Advogados contra Governo no novo estatuto: “Recorreremos às instâncias europeias”

Bastonária diz que edifício da Justiça está “a ruir”, aumenta pressão contra alterações do Governo ao estatuto e acusa-o de estar a empurrar responsabilidades para os advogados.

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Bastonária dos advogados diz que edifício da Justiça está “a ruir” Helena Pereira, Susana Madureira Martins (Renascença)

Fernanda de Almeida Pinheiro endurece o tom contra o Governo, em entrevista ao programa Hora da Verdade do PÚBLICO-Renascença que pode ouvir esta quinta-feira pelas 23 horas.

O prazo para responder ao Governo sobre o novo Estatuto da Ordem dos Advogados (AO) no seguimento da Lei das Ordens Profissionais já terminou. O que acabou a Ordem por responder como sendo fundamental nesta revisão do estatuto e que linhas orientadoras por parte do Governo receberam para a efectivação desta lei?
As orientações que recebemos do Governo não foram nenhumas. Houve umas conversas, não houve um documento apresentado pelo Governo que nos indicasse qual é a intenção em termos legislativos. A OA foi obrigada a fazer um contributo para uma proposta de lei [sobre o estatuto] que desconheço na íntegra. Nós temos a Lei dos Actos Próprios, que está em vigor desde 2009, e foi isso que dissemos: que essa lei tem de ser transposta para o estatuto. Nem isso nos conseguiram garantir, coisa que achamos muito estranho e que nos deixou logo alerta para a possibilidade de haver alguma ideia de restringir os actos que até agora foram actos próprios dos advogados e dos solicitadores, que estão completamente indicados e plasmados na lei. A OA entregou o seu contributo na segunda-feira.

Que linhas vermelhas é que traçaram?
Estas mesmas. Não pode haver alteração dos actos próprios. Não vai ser possível que alguém venha com a ideia de que podem inscrever-se na Ordem dos Advogados não licenciados em Direito. A questão também do artigo quarto: as deontologias não podem ter uma maioria de membros que não sejam os inscritos na profissão. Transmitimos naturalmente outras coisas que nos parecem pertinentes, mas são apontamentos, porque de facto não nos permitiram fazer o trabalho que é necessário fazer, nem a nós nem a todas as outras ordens profissionais. Por isso foi pedida, inclusivamente por parte do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, uma reunião com o primeiro-ministro.

E se as linhas vermelhas da OA não forem aceites?
Se nenhuma dessas questões forem respeitadas, teremos de apelar às instâncias europeias. Na Áustria, por exemplo, um estágio pode levar até cinco anos. Como é que nós podemos admitir que em Portugal um estágio tenha 12 meses? Esta profissão é uma profissão com uma elevadíssima componente técnica, uma complexidade enorme. Um licenciado em Direito não é um advogado, tem um diploma e depois para exercer uma profissão tem de ter a componente dessa profissão do ponto de vista prático e de saber o que é a profissão de advogado. A profissão de advogado não se confunde com a profissão de conservador, como não se confunde com a profissão de juiz, como não se confunde com a profissão de magistrado do Ministério Público.

Vamos aos actos próprios. Que actos são esses que o Governo quer abrir a outros profissionais?
Não foi dito, mas foi-nos dito que não vão plasmar no estatuto a lei que existe e, portanto, entendemos que pretendem alterar a lei dos actos próprios.

Para facilitar o acesso à Justiça, não admite nenhum acto que pudesse ser feito por outro tipo de profissional?
Não, repare: se não tiver a formação adequada, como é que se dirige a um tribunal? São coisas que se aprende e que são parte do patrocínio forense de um advogado. Não é suposto um arquitecto saber disso. Não é suposto um curioso saber disso.

Qual acha que pode ser a intenção do Governo ao querer mexer nesse assunto?
Não sei. Disseram-nos que poderiam inscrever-se na Ordem dos Advogados administradores de insolvência. Os administradores de insolvência, na sua maioria, são economistas e licenciados em Gestão. E a pergunta que faço é: o que é que um licenciado em Gestão e economista sabe de leis?

E qual foi a justificação dada para isso?
Porque é uma profissão jurídica.

O Governo faz isso para atacar os advogados?
Sinceramente, acho que se criou uma narrativa para dar a entender que a Justiça é inacessível ao cidadão por culpa dos profissionais, o que é uma coisa absolutamente espantosa, porque não corresponde minimamente à verdade. A Justiça é um bem de luxo para a esmagadora maioria dos cidadãos. E isso não é responsabilidade dos advogados, que passam a vida a dizer que é muito caro qualquer processo de taxas de justiça. Um cidadão ou uma cidadã que se queira divorciar e discutir regulações de responsabilidades parentais tem de pagar ao Estado 612 euros cada um.

O Governo está a transferir, no fundo, as responsabilidades?
Não tenho dúvidas nenhumas – para todos os profissionais. Não é só para os advogados. Quando se fala na morosidade, normalmente responsabiliza-se os advogados, as manobras dilatórias que vêm nos media, mas que representam uma ínfima parte de tudo aquilo que está em tribunal. Responsabiliza-se os magistrados judiciais, os magistrados do Ministério Público, quando o que está a montante é falta de meios. De quem é a responsabilidade dos meios da Justiça? É do Governo.

Há uma promessa feita pela ministra da Justiça que dava conta de que o Governo precisava de assumir as suas obrigações para reformular o apoio judiciário e mexer na tabela de honorários. O que é que percebeu que está ou não a ser feito nesta matéria?
Penso que existe da parte desta ministra uma grande vontade de melhorar o acesso. Nós propusemos na nossa primeira reunião criar um sistema nacional de aconselhamento jurídico que é absolutamente fundamental, para ser colocado à disposição de toda a população e de todo o território nacional.

Seria gratuito?
Seria gratuito ou com o pagamento de uma taxa moderadora para aceder ao serviço. Se existe um Serviço Nacional de Saúde em que o cidadão não tem de provar a sua insuficiência económica para poder aceder a cuidados de saúde básicos, entendemos que aqui também não o deveria fazer. E propusemos interligar esse sistema de aconselhamento jurídico com a parte do acesso ao direito propriamente dito, porque o profissional faria essa consulta prévia, ou seja, encaminharia para o sistema aquilo que deve ir ao sistema, para ser depois averiguado pela Segurança Social da incapacidade ou incapacidade económica do cidadão e cidadã.

Onde funcionariam essas consultas?
Onde quiserem. Podem acontecer nos conselhos regionais, nas delegações da OA, nos municípios.

Há compromisso para que isso aconteça?
Penso que sim. Todo o feedback que temos tido nessa matéria tem sido nesse sentido. A ministra da Justiça é uma humanista, tal como eu, e está seriamente preocupada com os direitos das pessoas. É um direito que está plasmado na Constituição.

Nos primeiros 100 dias deste ano houve sempre greves e, no caso da Justiça, houve um parecer do Conselho Consultivo da PGR a considerar ilegal a greve dos funcionários judiciais. Como vê esta situação? São os sindicatos que estão a agir na ilegalidade ou a lei da greve deve ser mudada, porque estamos perante novas realidades?
O que deve ser mudado é a origem das greves. Os funcionários judiciais têm carradas de razão. Sem funcionários judiciais, tal como sem advogados, sem procuradores e juízes, não há Justiça. Nós não conseguimos fazer andar a Justiça, se não temos funcionários. As necessidades que o país tem são cerca de 1000. Abriu um concurso para 200. Ora, nós sabemos que vão sair este ano para aposentadoria cerca de 300. O concurso abriu com uma remuneração de 846 euros. Explique-me como é que alguém vive hoje em dia com 846 euros. Explique-me ainda se, por exemplo, esse funcionário judicial for colocado fora da sua área de residência, como é que vai pagar uma segunda habitação e manter a sua vida com 846 euros? O MJ diz que está a ser estudado o estatuto profissional dos funcionários judiciais. Simplesmente essas promessas andam a ser feitas aos funcionários judiciais há muito tempo.

É uma questão meramente económica, financeira?
Sim, tratamos sempre a Justiça como o parente pobre. Todo o edificado da Justiça está a ruir e nós temos de acudir à Justiça. Há um plano em curso e, portanto, sim senhora, vamos aguardar para que as coisas sejam feitas, mas também temos de tomar medidas concretas. A tabela remuneratória dos advogados é a que está em vigor há 20 anos!

O que pediu sobre isso à ministra?
Que seja revista como um todo. Foi gizada em 2004. Já houve uma alteração ao Código do Processo Civil em 2013. O que dificulta imenso, por exemplo, um colega conseguir pedir os seus honorários. Tem de estar numa luta constante para conseguir chegar ao pagamento. Isto não pode ser.

Um pagamento faseado também?
Sim, o pagamento faseado tem de ser. Não faz nenhum sentido que um advogado possa ter de estar à espera décadas para receber os seus honorários.

A questão da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, CPAS, é uma batalha perdida?
Não, de maneira nenhuma. Os meus aliados são o próprio Governo e o MJ. Entregámos logo no início do mandato uma proposta de alteração legislativa para suspender os prazos, inclusivamente processuais, para aquilo a que chamamos “a lei do nojo”, para que os advogados possam, quando falece um filho, um pai, uma mãe, nos mesmos termos que foram alterados agora no Código de Trabalho, beneficiar dessa situação, beneficiar da licença de parentalidade, que deve deixar de ser os 60 dias para os 120. E a proposta foi naturalmente muito bem recebida pelo Governo.

Essa alteração vai ser feita pelo Governo?
Tem de ser um decreto lei governativo.

E relativamente à liberdade nos descontos dos advogados para escolherem a Caixa de Previdência ou o regime geral? O Governo deu alguma garantia sobre isso?
Não. Ainda não deu garantia nenhuma, porque esse assunto ainda não está a ser estudado. Já nos reunimos também com vários partidos. Temos uma reunião esta semana com o PS, que apresentou uma resolução para que o Governo crie esse grupo de trabalho. Não gosto de grupos de trabalho, mas também tenho de ter consciência que não se pode fazer uma alteração destas sem avaliar o impacto que ela vai ter do lado da Segurança Social, como também do lado da CPAS.

O mais recente exame de acesso à OA teve 75% de reprovados. Preocupa-a esta taxa alta? Acha que é apenas a pandemia a causa ou um deficiente ensino?
Não sei dizer, mas posso garantir é que isto é transversal. Vá ver os resultados do Centro de Estudos Judiciários, dos concursos dos conservadores.

As pessoas saem mais mal preparadas das universidades?
Claramente, no que diz respeito a este último curso, há um impacto claríssimo da pandemia. As aulas foram dadas todas exclusivamente à distância. A atenção e a concentração com que o formando está é completamente diferente.

Como se melhora a situação?
Através da formação inicial e contínua que tem de ser muito exigente. Aquilo que nos dizem é o imediatismo do costume. Em 12 meses está pronto um profissional. Como assim? Não está.

Já disse que é preciso restringir o acesso dos advogados brasileiros. Já há alguma solução?
Estamos a aguardar a posição da Ordem dos Advogados brasileiros. O que nós transmitimos é que as regras, tal como estão, não estão a funcionar. Eu não vou entrar ainda em detalhes sobre aquilo que nós entendemos que possa ser uma solução, mas entendemos que o acordo não protege os direitos das pessoas, dos cidadãos e das cidadãs, e compromete inclusivamente os profissionais que vêm exercer.

A formação é assim tão diferente?
Completamente. Não é só a formação, mas o ordenamento jurídico.

Sobre o caso da indemnização polémica na TAP, o relatório da IGF arrasou o acordo alcançado entre a TAP e a ex-administradora Alexandra Reis, considerando-o nulo. Este processo foi intermediado por um dos maiores escritórios do país. Como é que fica a imagem da advocacia neste caso?
Não vou falar sobre isso por duas razões. Por um lado, porque é um caso concreto. Em segundo lugar, porque a prática de uma sociedade, de um advogado, não fala por 35.000 profissionais. Se existiu alguma questão menos adequada na gestão desse processo, a senhora engenheira Alexandra Reis tem todos os meios ao seu dispor, legais e estatutários, para poder apresentar as suas reclamações.

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