O fabuloso vinho Madeira e o génio de Ricardo Diogo

Quando se bebe um Barbeito bebe-se — tomem atenção — “um vinho que é uma mistura de misturas das misturas”. Os eternos vinhos Madeira são mistério e alquimia, com muitos riscos pelo meio.

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Ricardo Diogo, da Barbeito, fotografado em Janeiro de 2023, na sua adega de Câmara de Lobos, na Madeira Gregório Cunha

Num mundo ideal, cada português apaixonado por vinhos deveria ter acesso às provas que Paulo Cruz organiza no seu Porto Extravaganza, que é a grande escola de vinhos fortificados de Portugal. E se o mundo fosse justo, mas mesmo justo, cada português deveria — nessas jornadas que ocorrem em Sintra — ter o privilégio de ouvir o Ricardo Diogo, da Barbeito (Vinhos Madeira). Isso não é desconsiderar os outros produtores de Porto, Moscatel ou Carcavelos. De modo algum. Mas a questão é quando o responsável da Barbeito aparece em palco sabemos que vamos ouvir alguém que não tem papas na língua (assim aprende-se mais) e que vamos provar vinhos com 30, 40, 50, 100 ou 150 anos.

Foi assim em 2018, quando o vinho Madeira entrou pela primeira vez no Porto Extravaganza, e voltou a ser assim em Março passado. Então como agora, depois de duas horas para provamos dez vinhos, a pergunta é sempre a mesma: como é possível? Como é possível estarmos perante vinhos com 100 ou 150 anos e andarmos com o parceiro do lado a fazer apostas sobre mais quantas décadas serão necessárias para estes vinhos iniciarem a sua curva descendente? Em rigor, ninguém sabe.

Quando estamos perante vinhos com indicação média de idade e por casta é evidente que o que está em causa é — vinhos base à parte — a arte de quem faz o blend. Blender ou master blender são os conceitos que se aplicam por todo o mundo quando falamos destes assuntos, mas Ricardo Diogo gosta de dizer que é um fulano que faz “umas misturas com os ingredientes que tem na adega”.

No mundo do Porto, do Moscatel, do Carcavelos, do Jerez ou do vinho Madeira, a condição para se fazer uma boa “mistura” é conhecer ao detalhe o que existe na adega. No caso da Barbeito, isso significa que o criador de vinhos da empresa tem de provar o seu stock de 1,2 milhões de litros três a quatro vezes por ano. Agora, o mundo do vinho Madeira tem especificidades, em particular na feitura das categorias premium: é que os vinhos estão guardados em cascos, garrafões ou garrafas, estrategicamente distribuídos em diferentes espaços dos armazéns porque as temperaturas influenciam determinantemente a evolução e os perfis dos vinhos.

E isto é assim porque, na feitura de um lote, é necessário encontrar-se características de evolução (aromas, acidez, estrutura ou concentração de açúcar e álcool) para a construção de um vinho desejavelmente harmonioso. E como também é preciso juntar vinhos de colheitas por vezes muitos distantes, é fácil imaginar a complexidade e o melindre do processo.

Complexidade que ainda cresce quando o master blender sabe que a gestão dos stocks é algo que tem de ser projectada a décadas de distância, visto que a feitura de vinhos de lote com 100 anos daqui por 5, 10 ou 20 anos dependerá da guarda — hoje — de vinhos muito velhos. Trata-se de uma equação com muitas variáveis.

Dir-se-á que, com a experiência, tudo se torna simples, mas um cálculo mal medido e o prejuízo pode provocar um colapso cardíaco ao director financeiro ou ao dono da Barbeito. Que o diga Ricardo Diogo que nunca esquecerá uns lotes feitos a partir de 700 litros de vinhos com mais de 100 anos e que tiveram de ser destruídos (“misturas desequilibradas"). Detalhe, cada litro foi comprado a 150 euros; prejuízo, 105 mil euros.

Por que razão você é assim tão franco? Isso faz parte da construção de uma personagem? “Eu?! Não. O que eu faço é um produto para consumo humano e para dar prazer — mexe com o corpo e a mente das pessoas. E, por isso, a minha obrigação é ser totalmente transparente. Com os consumidores e, também, com os enólogos que chegam aqui à minha adega e observam tudo. Eles aprendem comigo e eu aprendo com eles. Quem está nesta vida está sempre a aprender. Sempre", diz-nos.

Mas vamos ao desfile daqueles lotes de edições especiais da Barbeito que perfumaram uma das salas da Casa dos Penedos (mistura de tenda de especiarias marroquinas com loja de perfumes francesa ou italiana), explicados pelo homem da Barbeito com uma abertura de espírito e partilha que encanta e deixa qualquer amante de Madeiras deslumbrado.

Na última edição do "Porto Extravaganza", provámos dez vinhos com 30, 40, 50, 100 ou 150 anos da Barbeito, de Ricardo Diogo Direitos Reservados
Barbeito Garrrafões da Vó Vera — Verdelho 30 anos
Barbeito O Escanção — Malvasia 40 anos ,Barbeito O Escanção — Malvasia 40 anos ,
Barbeito Mãe Manuela – Malvasia 40 anos ,
Barbeito Manuel Eugénio Fernandes — Sercial 50 anos ,
Barbeito Aniversário Verdelho 50 anos
Barbeito Avô Mário — Bastardo 50 anos
Barbeito Garrafões do Ribeiro Real — Boal 50 anos ,
Barbeito Garrafões da Manuela 50 anos
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Na última edição do "Porto Extravaganza", provámos dez vinhos com 30, 40, 50, 100 ou 150 anos da Barbeito, de Ricardo Diogo Direitos Reservados

Garrrafões da Vó Vera — Verdelho 30 anos

PVP 350 euros

O arranque da prova é uma espécie de aquecimento para os vinhos mais complexos que se seguem, embora Ricardo Diogo garanta que a atenção que dá a um vinho de categoria superior é a mesma que dá a um vinho de entrada de gama. Este Verdelho que homenageia a avó de Ricardo tem 15% de um varietal da casta com 100 anos e que estava em garrafão. Como acontece quando se fazem lotes apenas de vinhos de garrafão, a exuberância aromática nunca é explosiva, mas este Madeira 30 anos destaca-se por umas curiosas notas de ervas secas e uma secura impressionante.

O Escanção — Malvasia 40 anos

PVP 400 euros

Este é um vinho que fará parte de uma nova vida da Barbeito, visto que marca o início da colaboração de Sérgio Marques (escanção de renome e coleccionador de vinhos Madeira) como blender da empresa, ao lado do Ricardo Diogo. Sérgio tinha algumas garrafas de vinho Madeira Malvasia de 1874 e Ricardo lançou-lhe o desafio para a criação de um 40 anos, com vinhos seus dos anos 1990 (cinco ou seis vinhos no total), visto que a juventude foi necessária para a harmonia do vinho final. Trata-se de um vinho com notas de madeira exótica, ligeiro ranço, com ataque quente e doce na boca (100 gramas de açúcar) ou não fosse um Malvasia.

Mãe Manuela – Malvasia 40 anos

PVP 498 euros

Certo dia, estava Ricardo Diogo em Londres para uma apresentação dos vinhos Barbeito quando salienta que, na feitura deste lote criado em 2013 (1050 garrafas), entraram 60 litros de uma colheita de 1880. Na sala estava Paul Day, que é grande conhecedor e coleccionador de vinho Madeira. No final da prova, este aproximou-se de Ricardo e, com uma calculadora, disse-lhe que deveria estar louco porque se tivesse vendido os 60 litros da colheita de 1880 como Frasqueira (vinhos datados) teria feito uma pequena fortuna. “E eu disse-lhe: pois, tens razão, mas sabes uma coisa, isto eram garrafões da minha mãe e eu não paguei nada pelo vinho, de maneira que...”.

Seja como for, este foi o vinho que mais nos encantou na prova. Nariz com notas de especiarias, algas, tabaco, folhas secas. Na boca, extraordinário na ligação da textura, álcool e acidez. Que elegância.

Manuel Eugénio Fernandes —​ Sercial 50 anos

PVP 450 euros

Manuel Eugénio Fernandes era um amigo da família Vasconcelos de Freiras e alguém com quem Ricardo aprendeu muito, quer aceitando a sua experiência, quer recusando certas interpretações suas na fermentação das uvas. “Na ideia do senhor Manuel Eugénio, que era muito teimoso, os vinhos fermentavam até ao fim — ele dizia ferviam até ao fim — e só depois é que se aguardentavam. Uma coisa impressionante, mas que era impossível de beber em si próprio pelo nível de acidez. A partir de determinada altura, nós passámos receber do senhor Manuel Eugénio mosto de Sercial — que ele considerava que era a grande casta da Madeira — e fermentávamos como entendíamos. De maneira que para o homenagearmos criei, em 1956, um lote de Sercial com vinhos de 1956 — por si próprio imbebível — mas que ficou domado com colheitas de 1989, 1990 e 1991.”

Resultado, temos um vinho com aromas que andam entre a pastelaria e as notas químicas, iodadas e salinas. Na boca, muito seca, destaque para a componente salina e para a acidez. As vinhas do Manuel Eugénio Fernandes estão a 50 metros de distância do mar.

Aniversário Verdelho 50 anos

PVP 544,50 euros

Temos de puxar pela cabeça para encontrar um produtor que assuma que um vinho feito por si não lhe agrada muito. Ricardo Diogo, por ser quem é, não tem problemas em assumir que acha que este 50 anos está a perder vigor. Ele lá saberá, mas nós não sentimos isso neste que terá sido um dos primeiros vinhos Madeira 50 anos. Ainda assim, na sua opinião, “o problema” terá tido a utilização de vinhos de garrafão a mais face ao vinho de canteiro”. Os vinhos de garrafão dão mais elegância e finura, mas precisam da profundidade dos vinhos de canteiro. “[E, por causa deste] casamento desequilibrado — que ainda assim funcionou para mim como uma escola —, recomendo que quem tenha uma garrafa destas a beba o quanto antes.”

Não sendo um vinho de espantar por qualquer item, a verdade é que nos surpreendeu pelos aromas de ranço ligeiro (fazem sempre parte) e madeiras exóticas. As notas oxidadas são bem evidentes, mas com uma sensação doce e quente ao mesmo tempo.

Avô Mário — Bastardo 50 anos

PVP 621,60 euros

Vale a pena começar por dizer que Ricardo Diogo é um fã tão grande de Bastardo (a casta francesa Trousseau, que grandes licorosos deu à José Maria da Fonseca) que diverte-se com aqueles que, na Madeira, andam à pressa a plantar Terrantez. E porquê? Porque em sua opinião a casta produz vinhos que, na prova, dão uma sensação de vinhos com uma evolução complexa em muito pouco tempo, e cheios de acidez (“mais do que os vinhos da casta Sercial).

Qual é o truque necessário? “Vindimar-se as uvas de Bastardo antes de terem atingido os 11 graus de álcool provável. Depois deste valor, o ácido acético dispara para valores elevadíssimos em 48 horas.

Este Avô Mário 50 anos é um extraordinário vinho que resulta da mistura de vinhos de 2007 com 100 garrafas de 1890. Parece um perfume feito à base de especiarias e citrinos variados e aqueles aromas que vulgarmente se designam de garrafa ou vidrados (vinhos com muito tempo engarrafados). Na boca as notas meias doces estão envoltas numa textura que parece veludo.

Garrafões do Ribeiro Real — Boal 50 anos

PVP 650 euros

A sequência de vinhos 100% de garrafão começa com a casta Boal, que, segundo o administrador, “é a casta na Madeira menos interessante". "Quando já foi exactamente o contrário na altura em que comecei a trabalhar. Com o Boal, era três pancadas e já está.” Este vinho apresenta-se relativamente turvo porque Ricardo Diogo não fez qualquer colagem, que, sendo importante para o casamento dos vinhos do lote, “pode retirar carácter ao vinho". "Se fosse permitido, eu não me importava de apresentar alguns vinhos turvos.”

Agora, lição do mestre: “se um vinho que está em garrafão não tem umas boas décadas (60 ou 70 anos) podemos ter problemas com o aspecto visual dos vinhos na feitura dos lotes, mas apenas no aspecto visual porque de resto está tudo perfeito".

Como vinho em si, sentimos notas de oxidação à mistura com tostados de pastelaria e aromas cítricos e outros frutos. Desafiante. A boca é um pingue-pongue entre especiarias mais ou menos picantes e mais ou menos doces.

Garrafões da Manuela 50 anos

PVP 750 euros

Aqui estamos perante um vinho de idade, é certo, mas que, ao contrário do anterior, tem vinhos com menos tempo de garrafão, o que significa que, segundo Ricardo Diogo, “há uma melhor integração dos vinhos”. E, de facto, seja por isso, seja pela casta ou por outra qualquer razão, este é um vinho que nos parece mais elegante.

Mistura no nariz notas químicas e com aromas cítricos, sendo que a boca revela uma elegância extraordinária. Se tivéssemos que iniciar alguém que não conhece o vinho Madeira ou que nunca bebeu um vinho Madeira decente, este seria o vinho certo.

Garrafão nº 2 —​ Sercial 100 anos

(não está à venda)

A primeira coisa a dizer é que este vinho foi comprado pelo avô de Ricardo Diogo, em 1946, para a fundação da empresa. A segunda é que, de uma pipa de 500 litros iniciais, chegaram até 1991 menos de 300 litros. A terceira é que, a partir de determinada década, um vinho Madeira velho tem de ir para o garrafão. E, quarta: “só 50% dos vinhos de Sercial é que têm interesse para evoluir no tempo e isso só se sabe sete anos depois da vindima”.

A nós, este Sercial pareceu-nos impositivo na boca, em resultado da acidez da casta e da secura (se calhar precisa de mais tempo para ficar domado). Muito mais interessante estava no nariz, em virtude das notas da acetona com ervas secas.

Garrafão nº 11 — Malvasia 150 anos

(não está à venda)

Para terminar em grande, um Malvasia que foi feito em... 1870. É a tal história: em que outra região do mundo se consegue um milagre destes? Provavelmente, em nenhuma. Aqui estamos perante um vinho com notas esverdeadas, e com um aroma que faz lembrar um perfume complexo (notas de citrinos e madeiras exóticas). A boca tem raça, a acidez volátil é alta, a doçura muito presente, mas tudo está numa harmonia impressionante.

Este garrafão nº 11 fez parte do dote que a mãe de Ricardo Diogo recebeu no seu casamento. E, com ele, o filho criou um vinho que é apenas apresentado em ocasiões especiais, como é o caso da festa Porto Extravaganza.

A Barbeito é, no universo Madeira, um caso especial. Não apenas pelos vinhos que faz, mas pela narrativa que a família soube criar à volta de um vinho que não é nada fácil de explicar, que requer artes de alquimia, paciência de santo para esperar que o tempo faça o seu trabalho (décadas) e capacidade de projecção dos níveis de stocks para um tempo em que provavelmente muitos membros da família e nós, amantes de Madeira, já cá não estaremos.

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Paulo Cruz organiza o "Porto Extravaganza" em Sintra Direitos Reservados
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