A necessidade de um sistema de cuidados sensíveis ao trauma na infância
Vemos o “indisciplinado”, o “provocador”, o “ansioso” – etiquetamos o comportamento – mas o essencial permanece, muitas vezes, invisível aos olhos: falta-nos reconhecer a origem destes sinais.
Gostamos de pensar que a violência mora longe, que a adversidade está distante de nós, e que o trauma é uma palavra pesada e longínqua, mais aplicável aos filmes que vemos do que à nossa vida. Mas a verdade é outra, convivemos bem de perto com histórias de adversidade e com os seus efeitos, mas muitas vezes não os vemos, não os reconhecemos, e (tanto de) o essencial fica, mesmo, invisível aos olhos.
Há já várias décadas que os estudos documentam que as experiências adversas na infância (ACE, na sigla inglesa) impactam negativamente o desenvolvimento de crianças e jovens, e que os seus efeitos se prolongam na idade adulta. Quando falamos em experiências adversas na infância, referimo-nos, por exemplo, a separação ou perda de um ente querido, violência doméstica, doença mental na família ou negligência, entre outras experiências stressantes e potencialmente traumáticas. A investigação tem documentado que a sua ocorrência na infância e o seu efeito cumulativo são particularmente ameaçadores do bem-estar individual.
Os estudos chamam a atenção para os impactos significativos da adversidade e do trauma que, conduzindo a alterações no desenvolvimento do sistema nervoso e imunitário, ocasionam problemas de saúde mental, saúde física, dificuldades de aprendizagem, problemas emocionais e relacionais e adoção de comportamentos de risco – toda esta avalanche de custos individuais exponenciada em termos comunitários, ocasionando uma sociedade mais vulnerável, mais violenta e mais consumidora de recursos.
Muitas vezes, defensivamente, pensamos que estas são as outras crianças e não aquelas com quem nos relacionamos.
No entanto, vários estudos internacionais afirmam que esta realidade é surpreendentemente prevalente. Também um estudo recente do Instituto de Saúde Pública vai ao encontro desta evidência, revelando que, das mais de 5000 crianças estudadas, 96% reportam pelo menos uma ACE durante os primeiros dez anos de vida.
A verdade é que a adversidade e o trauma não moram longe, mesmo passando muitas vezes despercebidos ao nosso olhar. Mas, se estivermos atentos, podemos encontrá-los quotidianamente no miúdo “indisciplinado” da turma da escola, na criança “provocadora e problemática” que observamos no parque, na jovem “apática e ansiosa” que treme com os gritos do pai na caixa de supermercado.
Vemos o “indisciplinado”, o “provocador”, o “ansioso” – etiquetamos o comportamento – mas o essencial permanece, muitas vezes, invisível aos olhos: falta-nos reconhecer que a origem destes sinais está, frequentemente, relacionada com uma trajetória marcada pelo stress tóxico, que provoca ameaça e desamparo, que induz um permanente estado de alerta, que altera a perceção do mundo e da realidade (que se torna imprevisível e assustadora), que fere o sentido de segurança básica.
É, hoje em dia, fundamental contrariar a invisibilidade da adversidade e do trauma. É importante que a comunidade e as suas organizações – a escola, os cuidados de saúde, os locais de lazer, os contextos de proteção – sejam responsivas a estas trajetórias e capazes de prestar cuidados sensíveis ao trauma, no alinhamento com a promoção dos direitos das crianças e da resiliência da comunidade.
Isto porque a criança vem inteira para a escola, não deixa o trauma à porta – pelo que, se ele for invisível e não for endereçado, pode tornar-se de uma exigência desmesurada a simples tarefa de a criança se concentrar e aprender. Da mesma forma, o jovem vai inteiro para o campeonato desportivo, não deixa o trauma no balneário – pelo que, se ele passar despercebido e não for trabalhado, pode assumir-se hercúleo para o jovem não esmurrar tudo e todos quando surge a frustração.
Assim, torna-se necessário que os vários contextos e os seus profissionais estejam imbuídos e capacitados de uma abordagem sensível ao trauma: que permita reconhecê-lo, bem como aos seus efeitos, e responder-lhe – para que se reduza o impacto destas experiências nas crianças, jovens e seus cuidadores, se evite a retraumatização e se potencie o saudável desenvolvimento de cada um.
Que seja este cuidar reparador, centrado na criança e na sua história, aquele que está presente em todo e qualquer lugar que a criança habita, não deixando que o essencial permaneça invisível aos olhos, a bem da saúde e felicidade individual e social.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990