Somos como a borboleta que queria ser abelha
Alimentados por um espírito de competição incessante, há adultos a quem não lhes chega o próprio sucesso. O sucesso dos outros atrapalha-os, ofusca-os.
Estava eu a ouvir, por curiosidade e amizade, o conto infantil “A borboleta que queria ser abelha” narrado pela belíssima voz de Miriam Gonçalves, autora do Só mais uma estória, podcast sobre histórias infantis, com colaboração de Raquel Bastos e sonorização de André Peralta, quando reparo que aquela história infantil é, afinal, a história que todos os adultos deviam ouvir.
A história escrita por Raquel Bastos começa assim: “Era uma vez uma borboleta que não se contentava em ser borboleta. Ela queria ser abelha.” A borboleta Tuli, a certo ponto do enredo, assume o motivo da tristeza: “Nunca vou conseguir voar tão rápido como uma abelha, ou produzir mel ou ter a cor amarela que elas têm.” Uma joaninha ainda insiste, tentando confortar a borboleta: “Mas tu tens umas asas tão lindas, tu és tão importante como uma abelha, e fazes tanta falta à natureza como uma abelha”, ao que a borboleta rapidamente responde: “Mas não sou uma abelha.” Na descrição deste episódio de podcast pode ler-se que “esta é uma estória sobre aceitação e sobre o seu papel no mundo”.
Nunca ninguém admite que é invejoso e talvez todos, em algum momento, já tenhamos sentido inveja. O problema é quando a inveja se torna doença, quando consome a alma, quando tira noites de sono a alguém que impacientemente sonha ser abelha, não olhando a meios, nem a gestos e atitudes. Alimentados por um espírito de competição incessante, há adultos a quem não lhes chega o próprio sucesso. O sucesso dos outros atrapalha-os, ofusca-os. O caminho é feito com o olho no vizinho, no colega de carteira, no colega de trabalho, no outro. O sucesso só é plenamente alcançado, perante o insucesso dos demais. E por muito que algumas empresas orgulhosamente vendam a ideia de que não há pessoas insubstituíveis, a verdade é que a unicidade de cada um, torna-nos especiais, irrepetíveis e impossíveis de ser copiados.
Não raras vezes, vemos em praça pública, figuras que apontam os erros, as falhas do outro, numa tentativa de infligir dano ou mágoa, relembrando os tempos da primária. "Oh professora, já viu o João? Ele só tirou excelente a Matemática porque copiou a resposta da pergunta 5 e a professora não viu", diz irritado o Zé, por receber ‘apenas’ o muito bom. Se não tivesse havido nenhum excelente na turma, nunca teria denunciado o colega. Mas não, não podia haver alguém melhor que ele e ainda por cima, a copiar. Oiço muitas mães e muitos pais, percebendo as competências dos petizes, a incentivar a esta luta pelo lugar ao sol. Não basta ter 15, tens de ser a melhor, 19, 20. E tens de ser melhor que a Margarida, que não se pode ficar a rir.
A minha mãe, quando eu lhe mostrava os testes, fosse 14 ou 19 valores (numa escala de 0 a 20), olhava-me sempre com o ar de quem apenas tinha cumprido o meu dever, e lançava sempre o mesmo convite: “Tira uma moeda da carteira e vai comer um gelado.” Poucas coisas me fazem tão feliz como gelados. Quando penso em competição, é igualmente inevitável recordar a minha professora de Português ao entregar-me um teste, classificado com 14 valores, e após verificar no meu rosto a desilusão, por ter descido a nota, declarou: “Oh Liliana, deixa-te de tolices.”
Nem sempre as classificações mais elevadas refletem os melhores trabalhadores, nem sempre a formação académica significa educação e saber estar. Não adianta por isso, pisar, fazer jogos de bastidores, maltratar, quando alguém tem aquele brilho especial, aquele brilho que irrita, aquela competência que magoa. A borboleta e a abelha são igualmente belas e necessárias, mas nunca serão iguais.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990