Na Casa de Cello, o vinho é um património para as gerações futuras
A Casa de Cello vai na 4.ª geração, mas João Pedro Araújo pensa já naquela que lhe sucederá. Desde que tomou as rédeas da casa que apostou em fazer dela um clássico – e os clássicos precisam de tempo.
Para que a conversa comece sempre pelo princípio, Tatiana Vale faz questão de esclarecer certas coisas à partida a quem visita a Casa de Cello. Que, nos vinhos, Verde não é o oposto de maduro. Que as vinhas em latada já foram a paisagem vinícola da região, mas hoje são ali mantidas apenas com finalidade expositiva. E que os vinhos da região não têm de ter todos gás carbónico nem o travo adocicado que lhes é frequentemente associado.
E a Casa de Cello, quando nasceu como marca, assumiu o propósito de trilhar um caminho próprio. “Fomos o primeiro produtor a não fazer vinho com adição de gás ou de açúcar”, esclarece a responsável pela parte de enoturismo. A decisão não era isenta de riscos – ou de críticas. Na altura em que lançaram a primeira colheita engarrafada, datada de 1996, “as pessoas não compreendiam”, continua Tatiana Vale. “Devolviam o vinho porque achavam que estava ‘morto’.”
Declaração de independência
A história da propriedade é bem mais antiga. A bonita casa coberta de trepadeiras que lhe dá nome – e “cara” aos rótulos – é de construção setecentista, e está na família de João Pedro Araújo desde o século XIX. Já tinha na produção de vinho uma das suas actividades, mas foi com ele que esta se profissionalizou.
João Pedro, que representa a quarta geração à frente da Casa de Cello, estudou em Bordéus e regressou com ideias concretas daquilo que queria fazer. Porém, a ligação umbilical à terra vem de muito antes, e é ela que está na origem de tudo. “Apaixonei-me pelo campo”, conta, recordando as férias aqui passadas, desde muito pequeno, em casa dos avós.
Quando tomou as rédeas da propriedade da família, vinha já com esse historial, a par de outra inestimável vantagem: “A disponibilidade mental com que pude encarar o projecto.” O apoio da família – uma família com mundo, sublinhe-se: a avó e a mãe estudaram em Londres, o avô na Suíça, bagagem incomum para a época – permitiu-lhe proclamar, “Não, não nos vamos vergar ao mercado.” Daí a designação “Viticultor independente”, ostentada como uma divisa no logótipo da casa.
A força das castas tradicionais
“Ser independente”, explica Tatiana, “é o que nos define. Não compramos uvas nem vinho.” Ou seja, tudo é produzido ali na Quinta de San Joanne, nos 14 hectares, partidos por 20 parcelas, que se avistam da pérgula junto da velha casa de família. Ou nos 20 hectares que têm na Quinta da Vegia, em Penalva do Castelo, região do Dão, onde produzem as suas únicas uvas tintas. A denominação “casa” significa isso, “várias quintas”.
Conversando com João Pedro Araújo, logo se nota outro foco de independência igualmente relevante: a imunidade a modas ou tendências. Houve uma ou outra cedência simbólica nos passos iniciais, porém, esclarece, destinadas apenas a conseguir a atenção do mercado. Um exemplo: escolheram não trabalhar castas estrangeiras. “No entanto, tivemos um chardonnay ao início, para chamar a atenção dos média internacionais, que já abandonámos.” A lógica é simples de compreender: dar como termo de comparação algo que a crítica já conhecia para aferir o potencial do produtor e do território, e logo de seguida puxar à conversa as castas que melhor traduzem a região.
Hoje, as vinhas, a maioria a rondar os 30 anos, produzem avesso, loureiro, alvarinho, arinto, malvasia fina e trajadura, sob certificação de produção integrada. “Isto significa o mínimo de intervenção. Para nós é o que faz sentido, intervimos só no momento certo”, explica Tatiana. “O biológico, em comparação, não será tão sustentável, já que obriga a maior intervenção, logo mais gasto de água, mais trabalho de tractor, mais emissões, mais compactação do solo.”
Vinhos para a posteridade
Elegância é perfil transversal ao portefólio de vinhos da Casa de Cello. João Pedro Araújo não gosta de falar demasiado sobre notas e aromas durante a prova, postura que se traduz nos próprios rótulos, pouco dados a floreados em redor do vinho. Mas se lhe pedirmos uma história, isso tem para contar. Aliás, os vinhos ajudam a contar a história da própria casa.
“Queríamos mostrar que a região pode fazer vinhos para envelhecer”, conta, enquanto verte para os copos o San Joanne Escolha, e recorda a quantidade de vezes que ouviu que os Verdes são para se beber no ano, que depois se estragam. “Foi este vinho que nos levou a pensar tudo nessa perspectiva da longevidade.” O rumo da conversa leva-o ao Château Margaux 1872 que a dada altura provou, e os seus olhos brilham, quando confessa, “É um sonho pensar que a minha família possa um dia abrir um vinho nosso com 100 anos”.
As primeiras colheitas levam já mais de três décadas, e para lá caminham, assegura. “Não temos tido, felizmente, más surpresas. Ainda não acusam cansaço”, admite, assumindo que esse propósito do longo prazo está lá quase desde o início. Ou desde que percebeu, com as primeiras colheitas do Escolha, que estava no bom caminho. “Queremos ser, daqui a uns anos, um clássico.”
Falar de futuro é também falar de projectos, e daí à pergunta sobre que planos a família tem para a belíssima casa da quinta é um pulinho. Turismo rural, talvez? “Não. É uma casa de família”, atalha a direito. “A família usa-a, os putos vêm para aqui com as namoradas e os amigos.” O sorriso que deixa escapar denuncia a sua satisfação. “É preciso que eles também se apaixonem por isto.” Tal como João Pedro se apaixonou quando era da idade deles. Afinal, é preciso garantir que alguém manterá o legado. Dificilmente haverá melhor motivo para fazer vinhos do que a posteridade.
Casa de Cello
Quinta de San Joanne, Mancelos (Amarante)
GPS: 41.2724, -8.1628
Tel.: 916136980
Web: casadecello.pt
Visitas desde 17,50 euros por pessoa (inclui prova 2 vinhos), só por marcação
Este artigo foi publicado no n.º 8 da revista Singular.