O ponto de partida foi um dos volumes de O Bairro, o título O Senhor Brecht e o Sucesso, de Gonçalo M. Tavares. A artista plástica Inês Pargana escolheu 12 textos (de 39), registou palavras-chave e possíveis caminhos de representação. Uns mantiveram-se, outros derivaram para novas opções. Depois, o escritor comentou em frases breves as pinturas da artista. Daí resultou a exposição A Narrativa São os Outros, na Casa da Avenida, em Setúbal, que termina neste domingo, às 17h.
Gonçalo M. Tavares explicou ao PÚBLICO numa visita guiada: “Foi um trabalho em quatro passos. Leitura do texto, escolha das palavras fortes, pintura e o meu comentário final.”
O escritor diz criar muito estimulado por palavras. “Às vezes, oiço uma ou duas palavras e a minha cabeça começa a funcionar, mas também escrevo estimulado por imagens. Por música, não. É engraçado. Não é estímulo nem acompanha a minha escrita.”
Depois de feita a pintura, em acrílico sobre linho e de grande dimensão, Gonçalo M. Tavares observava a imagem e escrevia qualquer coisa instintivamente, já sem pensar no texto inicial, ainda que lá pudesse haver alguma reminiscência. “Foi tudo escrito logo à primeira e sem grandes reflexões.”
Estes registos, feitos em pequenos cadernos abertos e pendurados ao lado dos quadros, funcionam como legendas ou títulos. “Adorei fazer isto. Com os cadernos contadinhos, se fosse preciso riscar, riscaria.”
Na pintura Os Turistas, que interpreta um conto em que uma agência de viagens se enganou e levou as pessoas para um local de guerra, o comentário final foi: “É importante não tomar banho na piscina dos mortos.”
Personagens maléficas
O encontro entre Gonçalo M. Tavares e Inês Pargana deu-se numa exposição da artista na Fábrica de Braço de Prata, em Lisboa. “Eu era leitora dele, mas ele não me conhecia. Sempre achei que ele escrevia sobre personagens que eram parecidas com as personagens que eu pintava. Achei importante conhecermo-nos. Convidei-o a ver a exposição e ele perguntou-me: o que podemos fazer?”
Gonçalo recorda: “Vi logo personagens muito fortes nos quadros. Havia umas velhotas que me ficaram na memória.” Começaram então a conversar sobre as personagens das pinturas e dos livros e veio a vontade de fazerem algo em conjunto.
Fixaram-se no Sr. Brecht. Uma homenagem ficcionada ao Bertold Brecht. “São micro-histórias com uma parte de humor negro que se cruza com o trabalho da Inês”, diz o autor.
“Gosto das personagens muito retorcidas do Gonçalo, têm humor, mas são macabras, insólitas, maléficas”, descreve a artista plástica.
Olhando de novo para o quadro Os Turistas, o escritor diz: “Há uma ironia, um sarcasmo, uma espécie de humor pesado, maligno. Humor com más intenções, uma espécie de sorriso pós-catástrofe ou pré-catástrofe. Até mais pré-catástrofe. Este quadro parece anunciar qualquer desgraça que vem aí. Mas ao mesmo tempo podia ser depois de qualquer desgraça. A sensação é de que as coisas não acabaram aqui.”
Algumas das interpretações de Inês Pargana ainda são mais violentas do que o texto original.
O título da exposição glosa O Inferno são os Outros, de Jean-Paul Sartre, e pretende “mostrar o que os outros são e o que somos”. Para Gonçalo, “são seres/personagens que estão desconfortáveis, como se estivessem sempre amputadas, mesmo que não seja fisicamente”.
Inês Pargana, formada em Arquitectura, reforça que “as pinturas não são ilustrações dos contos, são interpretações, umas mais literais, outras menos”.
A da Fisga, exemplifica, não é nada literal. “A história é a de um pássaro que foi atingido. Eu acho que ela foi a causadora da desgraça do pássaro, mas ela está a olhar para nós. Não sei se nós não somos o alvo principal.”
Para ela, é importante que o observador também faça parte da exposição e seja interpelado. “Por isso é que deixei ali o casaco, para o vestirmos e sentirmos que somos protegidos pelas histórias, sermos aquele anjo protector que o Gonçalo escreveu.” Os visitantes também são convidados a atravessar um dos quadros e a brincar com umas pernas que os encaminham para certas personagens.
Embora o processo conjunto tenha tido a sequência texto, ideias-chave, pintura, comentário, nada obriga a que o observador siga o mesmo caminho. “São várias narrativas quase sequenciais, mas que podem ser pensadas e vistas ao contrário”, diz Gonçalo M. Tavares.
No catálogo da exposição, pode ler-se nas palavras de Emília Ferreira, directora do Museu de Arte Contemporânea, que “curadoria pode ser um modo de contar estórias”. Concluindo: “Esta tem como título A Narrativa São os Outros. No exercício do auto-retrato, os artistas socorrem-se de espelhos para os elaborar. Aqui, não existe espelho. Escritor e desenhadora apresentam-se de frente para os outros. Esses outros somos nós. E é a nós que cabe completar a narrativa.” Verdade.