Do militar em apuros à recém-herdeira — burlas românticas estão a crescer

No último ano, a APAV detectou um aumento de fraudes românticas através da Internet. O PÚBLICO tentou descobrir as narrativas mais comuns e como ajudar quem é vítima destas burlas.

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O catphisher está quase sempre no estrangeiro quando começam as conversas DR/Christin Hume via Unsplash

A Ana (nome fictício) conhece um homem na Internet. É militar, gosta da mesma música e dos mesmos livros que ela. Apesar de estar longe, em serviço, está sempre disponível para a ouvir e, quando pode, envia fotografias. Quando ele pede ajuda para voltar a Portugal, a Ana envia dinheiro. O pagamento não funciona e a Ana envia mais dinheiro. Quando volta a não funcionar, começa a desconfiar que algo não está bem. Tem razão: ele não existe e as fotografias foram roubadas a uma notícia sobre o óbito de um soldado estrangeiro.

Desde o começo deste ano que a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) ouviu quase uma dezena de histórias do género. Por vezes, o homem (ou a mulher) é um profissional de saúde ou um recém-magnata que precisa de ajuda para receber a herança e as fotografias são roubadas de celebridades menos conhecidas das redes sociais. Em comum: conhecem-se online, a pessoa precisa de dinheiro, há sempre problemas com os pagamentos, e nunca é fácil marcar encontros frente-a-frente. Por vezes, as quantias enviadas ultrapassam os 20 mil euros.

Trata-se do esquema típico de fraude romântica via catphishing — o processo de criar uma identidade falsa num serviço online para enganar outros. Em Março, a APAV recebeu seis queixas sobre estas burlas depois de lançar uma campanha de alerta ao ver o número de casos a aumentar. Os números reais devem ser superiores, muitas vítimas adiam a denúncia por vergonha.

“Em Dezembro do ano passado começámos a verificar um aumento do número de situações. Em conversas informais com outros organismos com quem cooperamos, como o Gabinete de Cibercrime da Procuradoria-Geral da República [PGR], foi-nos dito que também estavam a registar um aumento de denúncias deste tipo de situações, e por isso decidimos avançar com a campanha”, explica Ricardo Estrela, responsável pela operacionalização das Linhas Internet Segura e Alerta da APAV, ao PÚBLICO.

A primeira abordagem dos criminosos são apps de namoro, sites de jogos ou redes sociais, com vítimas que se sentem muito sozinhas e que têm perfis públicos na Internet onde os criminosos podem aprender sobre elas antes do primeiro contacto.

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“Quando chegam até nós já enviaram vários milhares de euros" - Ricardo Estrela, APAV Getty/MicroStockHub

“Saber qual é o livro preferido de alguém pode ajudar a criar a narrativa de parceiro romântico perfeito”, salienta Ricardo Estrela. “As narrativas são quase sempre as mesmas. Parecem pouco credíveis quando se está do outro lado e se ouve sempre o mesmo, mas os burlões têm fotografias, enviam documentos falsos de embaixadas e por vezes criam sites inteiros para apoiar uma narrativa.”

As vítimas tendem a ser pessoas emocionalmente carenciadas. “São geralmente mulheres acima dos 35 ou 40 anos, que vão desenvolvendo relacionamentos amorosos à distância. No entanto, as pessoas idosas são as mais vulneráveis a esta situação visto que, muitas vezes se encontram mais isoladas e menos informadas”, detalha a psicóloga Ana Filipa Rodrigues que é voluntária na APAV e que tem acompanhado algumas vítimas destas fraudes.

Frequentemente são familiares e amigos que alertam a APAV para o problema quando percebem que a vítima começou a enviar dinheiro para um parceiro romântico que nunca conheceu pessoalmente. A vergonha é um dos motivos que impede as pessoas de pedirem ajuda mais cedo, quando começam a perceber que algo está errado.

“Quando chegam até nós já enviaram vários milhares de euros”, nota Ricardo Estrela. Nesta altura, o trabalho passa por fornecer apoio psicológico às pessoas afectadas e ajudá-las a apresentar queixa junto das autoridades.

“Começamos por analisar a informação enviada pelo possível burlão. Por exemplo, perceber se a fotografia do suspeito pertence a outra pessoa. Perceber se foram usados documentos e sites falsos e onde é que esses foram registados. Também é preciso perceber os números de telefone e as contas bancárias utilizadas”, enumera o gestor da Linha Alerta. “Juntamos toda esta informação para ajudar as vítimas a fazer queixas à polícia judiciária.”

Encontrar a cara do criminoso

Uma das formas de perceber se alguém está a usar a imagem de outra pessoa é ao pesquisar a imagem na Internet. Ferramentas como a Google Images e o TinEye permitem carregar uma fotografia para ver se existem outras iguais online. Isto também pode ajudar a encontrar fotografias que são usadas como base para criar imagens fabricadas com inteligência artificial (IA).

Quando uma imagem é criada do zero por algoritmos deve-se ter atenção a pormenores como as mãos e a arquitectura dos edifícios. Em 2023 também já começam a surgir sistemas criados para identificar sistemas que usam inteligência artificial generativa (capazes de produzir conteúdo novo com base em bases de dados). A tecnológica Mayachitra disponibilizou um demo grátis em 2021.

Algumas apps de namoro, como a Bumble, que foi criada a pensar em mulheres, oferecem serviços de “verificação de fotografia”. Pessoas que queiram parecer credíveis podem “verificar a identidade” na app ao tirar uma fotografia numa pose sugerida, na hora, pela Bumble. Isto também deve dificultar a criação de imagens falsas via inteligência artificial.

Além das fotografias, em Portugal, a Polícia Judiciária (PJ) sugere que as pessoas estejam atentas a narrativas sobre câmaras que não funcionam e pedidos de dinheiro. “Evite fazer pagamentos à cabeça. Não transfira dinheiro a pedido de outra pessoa: a lavagem de dinheiro é crime”, lê-se num documento de recomendações da PJ sobre burlas românticas.

Motivar a vítima a investigar

Levar alguém a perceber que é vítima de fraude romântica não é fácil. “A maioria deste tipo de vítimas cria laços afectivos e emocionais com os cibercriminosos ou cibercriminosas”, revela a psicóloga Ana Filipa Rodrigues.

Quando se suspeita que alguém próximo esteja a ser vítima de uma burla deste tipo, deve-se ser paciente e reunir provas que apoiem as suspeitas — ou até ajudar a vítima a reunir essas provas. “[Pode-se] explicar à vítima que ela própria deve investigar o perfil da pessoa com quem estabelece o contacto, verificar que género de informação contém, se tem muitos ou poucos amigos”, sugere a psicóloga.

Em vez de enviar dinheiro, pode-se propor à vítima que ajude o possível cibercriminoso de outra forma. “Nomeadamente encaminhando-o para outros serviços e caso a pessoa esteja no estrangeiro, muito frequente neste tipo de crimes, as embaixadas [do país em questão]”, explica Ana Filipa Rodrigues.

Os problemas, porém, não acabam com a descoberta da burla. “As vítimas tendem a sentir muita culpa e vergonha por se terem deixado enredar na teia do catphisher. Assim, é crucial que, quando conseguem transpor todas estas barreiras, os seus relatos sejam acolhidos sem qualquer juízo crítico ou culpabilização”, acrescenta Rita Fonseca Castro, psicóloga na Oficina de Psicologia.

“Como é que tu não percebeste que estavas a ser enganado?” é uma expressão a evitar. “Não é o momento para criticar aquilo que pode ser visto como uma ‘ingenuidade excessiva’, mas sim, para ser empático com o sofrimento que decorre de situações desta natureza”, acentua Castro.

A melhor ferramenta passa por impedir este tipo de crime ao ensinar as pessoas a estarem atentas aos sinais de alerta. “É igualmente necessário motivar a vítima a apresentar queixa junto das entidades competentes”, salienta Ana Filipa Rodrigues. “Este é um tipo de crime que pode acontecer a qualquer um.”

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