Orquestra Sinfónica Portuguesa: invocação diante do destino trágico
Composto por obras de Vianna da Mota, Tchaikovsky e uma estreia de Bruno Vicente, o concerto foi dirigido pelo maestro José Eduardo Gomes numa relação de grande cumplicidade e entrega com a orquestra.
O Teatro Nacional São Carlos (TNSC) e a OPART empreenderam nova iniciativa conjunta com a UNICEF Portugal, desta vez com vista à angariação de fundos para a operação de ajuda humanitária na Turquia e na Síria, na sequência dos terríveis sismos que dizimaram dezenas de milhares de vidas e deixaram milhões de pessoas sem casa, em Fevereiro passado. Com participação do Coro do TNSC, o concerto solidário foi dirigido pelo maestro José Eduardo Gomes numa relação de grande cumplicidade e entrega com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, interpretando obras de Vianna da Motta, Invocação dos Lusíadas Op. 19, Tchaikovsky, 4.ª Sinfonia, e a estreia absoluta de Bruno Vicente, Harmony of the Spheres Op. 16.
A Invocação dos Lusíadas é a terceira obra sinfónica de Vianna da Motta a partir da epopeia de Luís de Camões, depois de Ouverture D. Ignez de Castro (1886), e da Sinfonia à Pátria (1897) — obra emblemática do sinfonismo e do nacionalismo musical português do qual o compositor foi convicto defensor. Na sua Invocação dos Lusíadas, no entanto, a poesia de Camões não é só paratexto, mas matéria musical própria, cantada pelo coro da primeira à décima estância do canto primeiro.
O desempenho do coro foi de grande diligência, não obstante uma partitura exigente e até um pouco desmedida, sobretudo na prevalência do registo agudo. Os célebres versos iniciais, designados aos tenores, requeriam, pareceu-nos, maior homogeneidade e coesão do naipe a fim de invocarem a voz de Camões.
“Engenho” foi também o que ouvimos na estreia de Harmony of the Spheres, do jovem compositor Bruno Vicente, vencedor da 2ª edição do Prémio Incentivo à Composição, que na primeira edição premiou O Mostrengo de Marco Pereira. O título alude à antiga teoria cosmológica que remonta a Platão e Pitágoras, segundo a qual uma música inaudível — mas que sensibiliza as almas — é produzida pelo movimento dos corpos celestes, enquanto expressão da ordem e da harmonia do universo. Bruno Vicente não procura realizar essa harmonia celestial, ensaia apenas algumas aproximações, algumas algo irónicas.
Revelando destreza no uso do dispositivo orquestral, o compositor cria efeitos de exploração tímbrica verdadeiramente surpreendentes, especialmente nos sopros, alternando entre passagens dramáticas, porventura terrestres, e outras etéreas, sempre numa pulsação regular que juntamente com a estrutura formal em três partes (ABA’) parece corroborar uma certa ideia matemática de ordem.
Depois do intervalo, ouvimos uma execução exímia da 4.ª Sinfonia de Tchaikovsky, aplaudida a cada andamento, numa interpretação que dá conta de todo o seu romantismo e que convenceu especialmente depois do segundo andamento, com destaque para o solo de oboé e o carácter dolente e expressivo da orquestra, bem como a grande coesão instrumental e a extrema precisão dos pizzicatos no terceiro andamento.
Composta entre 1877 e 1878, a obra reflecte um período especialmente difícil na vida do compositor, depois do breve casamento (menos de três meses) com uma ex-aluna. A peça é dedicada, ainda que anonimamente, a Nadezhda von Meck, mecenas do compositor, a quem escreve uma carta confessando a depressão severa que atravessara aquando da escrita da obra — numa altura em que ser gay era ilegal na Rússia e em toda a parte (e como é hoje?) — e exprimindo pela primeira vez em palavras o seu pensamento musical.
Segundo o próprio, toda a sinfonia advém do primeiro tema — ferozmente apresentada pelas trompas, no início do primeiro andamento —, símbolo do destino enquanto força que “nunca poderá ser superada” e “impede o impulso para a felicidade de atingir o seu objectivo”. Tchaikovsky não diz que impulso é esse, embora o adivinhemos, e sobre a impossibilidade de ultrapassar o destino, pode dizer-se que, mesmo diante do mais trágico dos acontecimentos — como o que motiva o concerto —, a música pode não só tomar posição, mas fazer a diferença.