Ípsilon, tempos de mudança
O perfil da cultura de um jornal resulta de deliberação, como nas outras áreas, mas fundamenta-se em juízos de valor, ao contrário do que recomendam regras do jornalismo como a imparcialidade.
Numa redacção de um jornal como o nosso é comum haver dúvidas sobre o que interessa na política, o que importa no desporto ou o que prevalece na economia. Na cultura, mais do que dúvidas, há certezas que declinam em debates e cisões. Veja-se o exemplo do PÚBLICO, pegando no exemplo obrigatório do Ípsilon. Como nenhum outro produto do jornal, o caderno até hoje editado pelo Vasco Câmara tanto é objecto de paixões como de escárnio, de elogios como de críticas, de devoção como de apostasia. Que melhor elogio se lhe pode fazer?
A cultura nos jornais não obriga ao pluralismo do noticiário político ou internacional. O perfil da cultura de um jornal resulta de deliberação, como nas outras áreas, mas fundamenta-se em juízos de valor, ao contrário do que recomendam regras do jornalismo como a imparcialidade. O PÚBLICO e, consistentemente, o Ípsilon fizeram desta regra a sua constituição. Recusaram sempre o mainstream. Não aspiram à função burocrática do cartaz ou da agenda. Procuraram o risco da avaliação própria em detrimento das escolhas de terceiros.
Preferir destacar um filme de um cineasta desconhecido, de um país improvável, que leva 14 pessoas a uma sessão em detrimento de um blockbuster é, natural e desejavelmente, objecto de discussão. A oposição entre cultura de massas e cultura de elites sempre foi objecto de tensão. O confronto entre a procura de caminhos mais consensuais que aspira à paz e a escolha do risco que ora cria fiéis, ora ferozes opositores é ainda assim indispensável. Desde os seus primórdios que a cultura do PÚBLICO escolheu esta via. Sim, já demos destaque a filmes que acolheram 14 pessoas. Fizemos bem.
Esta via é a do Torcato Sepúlveda e do Vicente Jorge Silva, sem dúvida. É a opção de tudo questionar, tudo discutir. Vale mais o erro da aventura e da convicção do que a tentação do óbvio. Neste território, tanto pode valer um Nobel como um autor emergente; uma megaprodução de Hollywood como uma produção independente do Kosovo ou do Uzbequistão; um cantor global como uma voz nova da margem sul do Tejo. O Ípsilon foi assim sob a inspiração do Vasco e é assim que há-de continuar com o projecto do Pedro Rios, que agora se estreia.
Sabemos que na mudança há sempre uma dose de ruptura. O Ípsilon é um projecto do PÚBLICO, ancorado nos valores do PÚBLICO, mas interpretado pelo Vasco. Com o Pedro, o que muda é a última parte da equação. Como até agora, o suplemento e a sua variação online são e muito uma obra de autor. De alguém que olha, pensa, se inspira numa equipa de grandes jornalistas e críticos, e decide e faz. O Pedro é assim. Alguém que faz sem seguir as modas, as tendências ou os lobbies. Nas artes não impera a regra da maioria.
Por muitos defeitos que se lhe possam atribuir, um produto jornalístico assim ganha o que cada vez mais falta faz ao jornalismo: identidade. O Ípsilon é para os consumidores de cultura em Portugal tanto um objecto de interpelação como de envolvimento. Pelo que escolhe como pelo que recusa. Foi a identidade que construiu ao longo dos anos que lhe sublinhou a relevância. Que lhe garantiu um público fiel. Que o tornou uma referência. O que sai no Ípsilon pode desgostar alguém, mas não depende da aleatoriedade nem dos algoritmos.
A escolha pelas manifestações de massas da era do jornalismo digital deu cabo de imensos suplementos culturais na esfera da língua portuguesa. O Ípsilon resistiu. Um suplemento editorial com um rosto vale sempre a pena. O que nos mostram outros rostos e outros lugares, mesmo feios ou áridos, vale sempre mais do que o que convoca para rostos e lugares conhecidos, mesmo que suaves e belos. O Ípsilon é uma declaração de princípios.
Na edição que assinala a passagem de testemunho do Vasco Câmara para o Pedro Rios, vale por isso a pena reassumir a visão do PÚBLICO para a cultura e para o seu suplemento seminal. O Ípsilon foi felizmente distintivo e queremos que permaneça distintivo.
Em nome do PÚBLICO, há que agradecer ao Vasco por estas décadas de inspiração, esforço e intransigência – ele vai continuar por aí com essas qualidades. Como há que agradecer ao Pedro Rios por ter aceitado renovar tão exigente tarefa.