Trump e o mito da imunidade aos escândalos e acusações
Desde a sua surpreendente vitória em 2016, o anterior Presidente dos EUA não voltou a proporcionar grandes triunfos eleitorais ao Partido Republicano. E nada indica que isso se altere em 2024.
"Eu podia matar uma pessoa na Quinta Avenida e nem assim perderia eleitores."
A frase, dita por Donald Trump em Janeiro de 2016, pouco antes do arranque das eleições primárias do Partido Republicano para a escolha do candidato à Casa Branca nesse ano, agarrou-se à pele do anterior Presidente dos EUA e transformou-o numa espécie de Super-Homem da política norte-americana — com a vantagem, segundo os seus admiradores, de o ter deixado imune a escândalos e a polémicas, que só funcionariam como kryptonite para os comuns mortais.
A tese da invulnerabilidade política de Trump regressou em força nos últimos dias, quando se percebeu que o gabinete do procurador distrital de Manhattan estava a ultimar uma acusação criminal contra o magnata do imobiliário, a primeira de sempre a ter como alvo um ex-Presidente dos EUA.
Segundo os media norte-americanos, a acusação foi aprovada nesta quinta-feira por um grande júri e Trump será notificado nos próximos dias.
"Se isso acontecer, Trump será reeleito com uma vitória esmagadora", afirmou o empresário Elon Musk na rede social Twitter, numa reacção às notícias sobre a possível acusação e detenção do anterior Presidente dos EUA.
Na vida real, segundo mostram as sondagens e os resultados eleitorais, a fantasia do Super-Homem da política norte-americana não sobreviveu às eleições de 2016, quando Trump surpreendeu o mundo ao triunfar no Partido Republicano e ao derrotar a candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton.
Apesar de ter sido derrotada de forma humilhante em 2016, Clinton teve mais três milhões de votos do que Trump em todo o país, e perdeu a eleição porque foi derrotada em três estados onde os candidatos democratas já não perdiam desde os tempos de Ronald Reagan e de George Bush (e onde Joe Biden venceria em 2020): Pensilvânia, Wisconsin e Michigan.
Se 77 mil votos em Trump nesses três estados — num universo de 13 milhões de votantes — tivessem ido para Clinton, a candidata do Partido Democrata teria vencido a eleição presidencial.
Base leal, mas curta
Nada disto tira o mérito da vitória de Trump em 2016, e muito menos esconde o facto de que o anterior Presidente dos EUA veio revolucionar a política do país e o Partido Republicano ao surgir como o porta-voz de uma parte significativa de um eleitorado conservador, ultranacionalista e antiglobalização.
Mas a grande vantagem de Trump nas eleições contra outros candidatos republicanos — no fundo, o trunfo que o tem posto no topo das sondagens do seu partido nos últimos sete anos — funciona como kryptonite quando tem de se apresentar ao eleitorado de todo o país.
Os seus eleitores mais fervorosos — aqueles que não se afastariam dele nem que o vissem a matar uma pessoa na Quinta Avenida — são suficientes para lhe garantir uma nova nomeação como candidato do Partido Republicano, mas parecem ser poucos para derrotar o candidato do Partido Democrata em 2024.
"Trump tem sido invulgarmente resiliente ao longo dos anos graças à inquebrantável lealdade dos eleitores que o vêem como seu representante", disse no Politico o colunista Alexander Burns.
"Mas esses apoiantes são uma minoria no país, tal como os republicanos têm constatado da forma mais dura nos últimos anos. A estimulação do apoio pessoal a Trump não foi suficiente para salvar a maioria na Câmara dos Representantes em 2018, nem para defender a Casa Branca e o Senado em 2020, e nem para convocar uma 'onda republicana' em 2022."
"Sim, Trump pode ganhar a curto prazo [com a acusação criminal], se os republicanos se unirem à volta dele", diz Nate Cohen no New York Times. "Mas é um exagero argumentar que os republicanos que não o apoiam vão passar a apoiá-lo após uma acusação criminal", defende o jornalista, apontando para o facto de Trump não ter subido de forma significativa nas sondagens das primárias do Partido Republicano na sequência das buscas à sua mansão na Florida, em Agosto de 2022.
E o processo de Manhattan está longe de ser o único problema de Trump.
A confirmar-se que o anterior Presidente dos EUA terá de se defender nos tribunais de acusações do Departamento de Justiça e do estado da Geórgia sobre a eleição de 2020, sobre a invasão do Capitólio e sobre a retenção de documentos da Casa Branca na Florida, muitos eleitores republicanos podem passar a ver no governador da Florida, Ron DeSantis, uma boa alternativa a Trump — um candidato de uma linha ideológica semelhante, muito mais jovem e sem a bagagem política e criminal do anterior Presidente dos EUA.