A minha última sessão
Resolução de final de pandemia, assunto em que tenho pensado nos últimos finais de ano, concretiza-se agora: vou deixar de editar o suplemento Ípsilon. Esta sexta-feira é a minha última sessão.
Não se deixem enganar pelo título. É uma piscadela de olho, coisa de cinéfilo. Não há nostalgia. Passou tudo depressa demais. Ou então acreditem nele q.b. Quantos anos foram? Como é que se contam décadas que passaram como um flash de tempo?
Resolução de final de pandemia, assunto em que tenho pensado nos últimos finais de ano, concretiza-se agora: vou deixar de editar o suplemento Ípsilon. Esta sexta-feira é a minha última sessão.
Não há nostalgia, não há drama nem convulsão, é um recomeço. O Ípsilon fica em mãos cuidadosas e ternas. As do Pedro.
Mas, inevitavelmente... lá vêm as imagens a preto-e-branco, o dorido The Last Picture Show e o seu inevitável masoquismo, coisa que eu quis sacudir e por isso pensei num alternativo mais seco Clap de fim para título desta crónica. É vício de cinéfilo.
Inevitavelmente, no entanto, sim, aquele foi o melhor dos tempos. Não sei exactamente o que é quis dizer o norte-americano A. O. Scott quando, ao despedir-se há dias dos seus leitores como crítico de cinema do New York Times, se lembrou do jornal que o acolhera no passado: “it was still, mostly, a newspaper”. Quando era ainda, sobretudo, um jornal. Quando era um jornal, sobretudo.
Não sei exactamente o que ele quis dizer, mas acho que tenho uma ideia. Também me recordo como ele do cinema: as plataformas de streaming ainda não existiam, nada disso, nem “redes sociais”, fazia parte do nosso léxico. O cinema surfava na crista da onda. Ou assim o podíamos ainda enganosamente conceber porque desde o início se diz que a morte o ronda.
Sei também o que aconteceu depois: o negócio das salas ficou dependente dos blockbusters para poder existir como modelo, os espectadores passaram a ficar em casa “narcotizados por algoritmos” e morbidamente dependentes do scrolling — assim A. O. Scott descreve o “apocalipse”; assim A. O. Scott decidiu mudar de vida —, as conversas sobre filmes tornaram-se conversas sobre séries de televisão, as conversas, aliás, deixaram de ser conversas porque a fan culture é coisa de uniformização.
Se isto servir para concluir com a “tese” de que, tendo havido em todas as épocas maus filmes, esta é a que está servida por piores espectadores, pouco aventureiros e comodistas, com medo de se magoarem em frente ao ecrã, eu subscrevo-a.
A rede social, que domina todos, até os cinéfilos que ainda afectam uma pose de romantismo terminal, determina de forma totalitária o nosso dia-a-dia e puxa por nós, e pelo pior de nós: somos a populaça do The Fury, de Fritz Lang.
É assim no cinema. Também nos jornais, e nas caixas de comentários, se plasma aquilo em que entretanto nos tornámos.
Mas não vou mudar de vida, como fez A. O. Scott. Vou é melhorar a (minha) vida. Quero regressar ao idealismo, a única forma de resistir. Quero deixar de estar à espera dos textos porque quero redescobrir os textos. Os meus: tenho a cabeça já cheia com uma série deles, um entusiasmo juvenil que até a mim me vexa, o que, podendo ser confrangedor, é também um privilégio porque é como me sinto: um beginner com tudo o que entretanto aprendi. E quero redescobrir os textos dos outros: Alexandra, Ana Cristina, António, Daniel, Gonçalo, Helena, Isabel, Inês, Joana, Jorge, José, Lucinda, Luís, Luísa, Mariana, Mário, Nuno, Rodrigo, Sérgio… quero ler-vos como novos.
Não quero saber se os textos são healthy ou weak. Isto é, porque é este o jargão que se oficializa no mundo digital, se são os primeiros ou os últimos na meta de leituras e de partilhas, quais pobres galgos de corrida (por razões pessoais ganhei afeição extrema por estas elegantes e perseguidas bestas), com isso se determinando um plano darwinista sobre a espécie em que vale a pena apostar.
Quero estar longe desse ruído, que é barulho de bilheteiras. Quero estar perto do jornal que é, ainda, sobretudo um jornal (comecei por dizer que queria reconquistar a minha inocência). Quero escrever, seguir o apelo das histórias, apenas isso, dos filmes, apenas deles, saudavelmente ignorando partilhas e likes e o perfil pronto-a-vestir do que dizem ser as histórias que as redes sociais querem. Resistindo, resistindo, no confronto com a notícia do cão mais velho do mundo que é português. Se o mundo fosse só esse, só assim, haveria uma parte dele que nos estaria interdita. Ora, um jornal que é sobretudo um jornal, pelo contrário, serve para alargar o mundo.
Vou deixar de ser editor do Ípsilon. Esta é a minha última sessão.
Passaram várias décadas, não é preciso fazer contas mas inevitavelmente passou tempo desde que tive muita sorte. Desde que o PÚBLICO me salvou a vida e a) entrei como estagiário seleccionado pelo Torcato, pelo Vicente, pelo Augusto, entre outros grandes e intimidantes (tivemos sorte de esbarrar com gente assim, de ser avaliados e escolhidos por gente assim); desde que b) comecei a editar o suplemento de cultura do jornal, nas suas várias metamorfoses, primeiro Y e depois Ípsilon, em todas as declinações, sob direcções mais à esquerda ou à direita, mais sinceras e mais dissimuladas, mais talentosas e mais desastradas, fazendo aquilo que achámos mais justo, criativo e importante. Não se pode descartar uma hipótese: talvez nos tenham deixado livres porque não sabiam o que fazer connosco.
Como quer que seja, a impressão digital tem sido sempre a mesma até hoje: liberdade. Lembro-me exactamente do PÚBLICO quando era ainda, sobretudo, um jornal. Lembro-me porque essa memória está na redacção que ainda somos. Mas é decisivo impedir que ela se desvaneça porque daqui em diante será cada vez mais difícil mantê-la, fazê-la sobreviver. O maior desafio de um jornal, a sua prova de coragem, o brio da sua direcção, a única maneira de ser fiel ao pacto com os seus leitores renovando-o e renovando-os, é lembrar-se da sua história, fazer-lhe justiça. E, supremamente importante, transmiti-la.
É que não foi há tanto tempo assim. Mas decididamente foi noutro tempo. A Cultura, secção e assunto deste jornal, era um acontecimento das páginas (a Cultura era um acontecimento que tinha consequências políticas; não era apenas um gabinete de gestores). Imagino que, como secção, já fôssemos um grupo de excêntricos e de snobs. Tivemos sorte: o jornal salvou-nos. É ainda o melhor sítio para escrever. E é, por isso, o melhor jornal para se ler.
Deixo de ser editor do Ípsilon. Esta é a minha última sessão. Mas não vou, isso nunca, deixar de...