“Não posso viver sem ti”
O caso da Lara, assassinada pelo avô, é pouco comum. Mas o que as notícias nos dizem é que a Lara foi assassinada “porque” o avô não conseguia passar sem a neta.
Foi assassinada mais uma criança! Tinha 7 anos e chamava-se Lara, tal como a menina assassinada pelo pai no Seixal, em 2019. Entre 2019 e 2022, foram assassinadas em Portugal, em contexto de violência doméstica, nove crianças. Só no ano passado foram quatro.
Estes dados contam uma parte da história destas crianças, e os relatórios anuais, sobre violência doméstica ou criminalidade participada, são demasiado frios para percebermos a magnitude do drama de milhares de outras crianças, vítimas da violência doméstica, num dos países mais seguros do mundo fora de quatro paredes.
O homicídio nas relações de intimidade é infelizmente frequente. Entre 2019 e 2022, foram assassinadas 118 pessoas e as mulheres constituem a grande maioria das vítimas mortais (78,8% mulheres; 13,6% homens e 7,6% crianças). Esta tragédia é tão comum que parece que a sociedade já está dessensibilizada.
Quando uma criança é assassinada ficamos toldados pela indignação, o choque toma conta de todos. Passados uns dias, tudo volta ao normal. E passados uns tempos, é assassinada mais uma pessoa e voltam as mesmas perguntas e as mesmas respostas.
O caso da Lara, assassinada pelo avô, é pouco comum. É mais frequente o homicídio de crianças por progenitores. Não sei se o avô da Lara era um agressor em violência doméstica ou se tinha história de tal. O que as notícias nos dizem é que não estava disposto a viver longe da neta e este facto aproxima-o das características presentes nos agressores controladores e com potencial homicida, em contexto de violência doméstica.
O avô da Lara, após o homicídio, tentou suicidar-se. Os estudos nacionais e internacionais referem que 33% dos homicidas em contexto de violência doméstica suicidam-se. Muitas das pessoas agressoras que cometeram o homicídio seguido de suicídio (ou tentativa) deram pistas, mais frequentemente a pessoas próximas. Verbalizações como “não consigo viver sem ela”, “estou farto da vida”, “nada faz sentido na minha vida” são comuns.
É importante perceber que este tipo de verbalizações é preocupante e deve ser considerado como grave e com possibilidade de desfechos letais. Estes dados são muito importantes, especialmente para as famílias, comunidade e serviços de saúde.
A Lara, segundo os vizinhos, andava sempre com o avô e surgiram testemunhos como “nunca suspeitamos de nada”, “andavam sempre juntos”, “ele não passava sem ela”. Lara foi assassinada “porque” a criança e a mãe iriam viver para outra casa, e o avô não conseguia passar sem a Lara. Segundo o irmão do avô, este andava muito triste com o possível afastamento. Andava triste há meses.
Aparentemente, não existem registos sobre violência doméstica ou no sistema de proteção de crianças e jovens. Mas isto não significa que não existissem indicadores preocupantes e informação noutras fontes e organismos.
Em 2018, conheci Luke e Ryan Hart, numa conferência no Reino Unido, onde fui orador. A família Hart era vista pela comunidade como uma família “perfeita”. Luke, Ryan e a irmã eram crianças bem-comportadas, excelentes alunos. Os pais eram vistos pelos vizinhos como um casal exemplar e o pai era um homem respeitado na comunidade. O que ninguém sabia era que toda a família era vítima de um controlador, obcecado e inflexível. Um dia, com a ajuda dos filhos, a mãe conseguiu-se separar-se. O pai não aceitou e, passados alguns dias, matou a filha e a ex-mulher, suicidando-se de seguida.
O exercício da parentalidade por pessoas agressoras, com personalidade controladora, em violência doméstica é revestido de caraterísticas particulares. Alguns agressores que exercem controlo coercivo não recorrem à violência física, e quando o fazem é em situações em que sentem que será a solução mais eficaz para retomar o controlo sobre a(s) vítima(s)/família.
Muitos dos agressores que evidenciam comportamentos de controlo recorrem com mais facilidade à “disciplina física” e demonstram sentimentos negativos em relação às crianças (ex. raiva), especialmente se estas se opõem ao comportamento violento e controlador sobre a vítima adulta. Muitas destas características estão assentes num sentimento de direito e de propriedade sobre a família. É raro reconhecerem que a violência contra a vítima adulta, usualmente a (ex) parceira, constitui também violência contra a criança, e isto impede-os de ver ou compreender o impacto traumático na criança.
Como priorizam as suas próprias necessidades no relacionamento com as vítimas adultas, têm formas similares de se relacionar com as crianças. Podem sentir-se legitimados em negligenciar os cuidados básicos e usar a violência contra as crianças quando estas não cumprem as suas expectativas.
No caso das relações de intimidade, o desrespeito pelas necessidades das crianças continua, muitas vezes, após a separação, quando privilegiam o seu “direito” de contactos em oposição ao dano traumático que esses contactos podem causar à criança. O exercício dos comportamentos de controlo sobre a família (vítima adulta e crianças) persiste mesmo após a separação, sem que muitas vezes os profissionais percebam que as pessoas agressoras recorrem aos serviços para criarem incidentes e assim manterem o controlo sobre a vida da vítima adulta.
Por vezes, a dificuldade em identificar o risco para as crianças assenta em crenças ou mitos, como:
1. a gravidade da violência pode ser determinada observando a gravidade dos incidentes de violência física;
2. a violência é causada por uma dinâmica do casal, e que o fim do relacionamento trará o fim da violência;
3. as crianças não são muito afetadas quando a violência é entre os pais e que o comportamento de violência não tem impacto significativo no dia-a-dia da criança;
4. uma pessoa adulta que comete violência doméstica a outra é capaz de exercer a paternidade/maternidade de maneira adequada.
O controlo coercivo é um processo de erosão da autonomia, vontade e humor da(s) vítima(s). O dano é estrutural e as vítimas muitas vezes ficam incapacitadas e limitadas nos seus direitos humanos. Alguns agressores não recorrem à violência física e, como tal, a violência doméstica pode ser invisível aos olhos mais destreinados. Alguns comportamentos de controlo são muitas vezes confundidos como excesso de cuidado, preocupação ou proteção.
Para a proteção das crianças vítimas da violência doméstica é fundamental reconhecer os objetivos que estão por detrás do comportamento da pessoa agressora, partilhar e articular informação com os profissionais, nunca esquecendo que muita da informação está na comunidade e na família.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990