A metáfora do duche. Ou as razões por que Portugal precisa de abrir a torneira da água fria
Esquerda e direita são como as torneiras da água quente e da água fria. Para escolher entre uma e outra, precisamos primeiro de saber uma coisa muito importante: qual a temperatura a que está a água.
1.
O meu avô, que foi uma grande influência na minha vida, era socialista e adorava Mário Soares. O meu pai sempre foi do PSD, e a memória política mais antiga que tenho é vê-lo fechar-se na casa de banho no dia 4 de Dezembro de 1980, quando o avião de Sá Carneiro se despenhou em Camarate. Tinha sete anos, não percebia nada de política, mas percebi aí que podíamos chorar a morte de quem nunca tínhamos conhecido na vida.
Em 1986, arranjaram-nos bandeiras do PSD e integrámos uma daquelas longas colunas de automóveis que buzinavam durante as campanhas eleitorais, em apoio de Freitas do Amaral. Felizmente, Freitas do Amaral perdeu.
Porque vivia em Portalegre, nunca partilhei o desprezo que boa parte da elite lisboeta tinha (e ainda tem) por Cavaco Silva, porque vinha de Boliqueime, comia de boca aberta e não sabia quantos cantos tinham Os Lusíadas. Eu vi, com estes olhos que a terra há-de comer, o quanto o interior de Portugal mudou durante o cavaquismo, uma época em que choveu dinheiro da Europa, mas não mais do que chove hoje em dia.
Na escola secundária onde andei na década de 1980, e à qual tanto devo, não suportava o senhor da secretaria que atendia os alunos, e que cortava as unhas sentado à sua secretária, enquanto nós, miúdos sem voz nem poder, esperávamos pacientemente que ele chegasse ao último mindinho e decidisse levantar o rabo da cadeira — o que, desde então, me provocou um profundo desprezo pelos usos abusivos dos pequenos poderes e pelos papéis que carecem de carimbo.
Cheguei a Lisboa no dia 6 de Outubro de 1991 para estudar Engenharia Química no Técnico, e sei o dia exacto porque o meu quarto ficava ao lado da Alameda D. Afonso Henriques. A Alameda foi o lugar escolhido por Cavaco Silva para comemorar a sua segunda maioria absoluta.
Nessa altura, talvez eu fosse vagamente de direita, porque achava o jornal O Independente muito divertido. A minha adesão à direita tinha menos a ver com a ideologia do que com o sentido de humor. As pessoas de direita eram muito mais engraçadas e escreviam bastante melhor.
No entanto, não havia em mim um pingo conservador. Tinha uma costela anárquica; era pouco dado ao respeito pelas hierarquias que não fossem devidas a estrito mérito; tinha uma relação turbulenta com a religião, apesar do meu fascínio pelos Evangelhos (que permanece) e do meu desprezo pelas cabeças farisaicas (que também permanece).
Sendo estruturalmente antidogmático, tinha uma visão optimista acerca da natureza humana, e um fraquinho por, não direi utopias, mas grandes causas, como a defesa do casamento gay. Tudo coisas que faziam de mim um progressista e que para muito boa gente cheiravam demasiado a esquerda. Vejam as voltas que o mundo dá.
Quando me perguntam quando é que me politizei, ou seja, quando é que passei a assumir-me claramente como de direita, respondo sempre: 11 de Setembro de 2001. Coincidiu com a explosão do activismo político nos blogues e com o tempo em que comecei a escrever opinião nos jornais. Um dos meus primeiros artigos chamava-se O segundo parágrafo e criticava o inaceitável “mas” da esquerda: “O que aconteceu em Nova Iorque foi terrível, mas os Estados Unidos…”
Para mim, não podia haver “mas” a propósito do 11 de Setembro.
Poucos anos depois apareceu José Sócrates, e para mim também não podia haver “mas” a propósito de José Sócrates.
Mas a verdade é que havia muitos outros “mas”, que sempre dificultaram a clareza do meu posicionamento ideológico. Quando, em 2007 e 2008, surgiu Barack Obama nos Estados Unidos, ele pareceu-me o político mais fascinante que já tinha visto, em carne e osso. Ainda não mudei de opinião.
Sem uma formação política sólida, há 15 anos fui obrigado a fazer esta pergunta a mim próprio: como é que eu podia ser claramente de direita em Portugal — já que não queria nada com o PS — e claramente de esquerda nos Estados Unidos da América — já que não queria nada com o Partido Republicano?
Ao mesmo tempo, pertenço a uma geração para quem a figura paternalista de Salazar, mais as Conversas em Família de Marcello Caetano, eram insuportáveis. Por mais caótica que tivesse sido a Primeira República, nada justificava a permanência de Salazar no poder após 1945. A sua incapacidade para perceber o carácter irreversível das descolonizações europeias, mais a forma como asfixiou a liberdade de um país inteiro com uma facilidade e um engenho que ainda hoje envergonham, tinham uma consequência óbvia para mim: se no tempo do Estado Novo aquela era a direita, então eu seria certamente de esquerda.
Donde, saltando para o presente, eu, que me afirmo de direita no Portugal de 2023, seria de esquerda nos Estados Unidos de 2023 e seria igualmente de esquerda no Portugal de 1963.
Não me parece que seja um caso único. Até é possível que o meu caso seja bastante vulgar. Estou convencido de que, tirando aquelas pessoas muito politizadas, com uma ideologia vincada e cabeças relativamente dogmáticas, que as levam a encostar-se aos extremos dos respectivos espectros políticos, ou então a não ver grandes diferenças entre pertencer a um partido político e pertencer a um clube de futebol, todas as outras — incluindo neste “todas as outras” o vasto centro — são bastante gender fluid em termos políticos.
O seu posicionamento ideológico, tal como o meu, depende de um tempo e de uma geografia concretos, e não faz, por isso, qualquer sentido ser definido de forma abstracta e absoluta — fora de um contexto.
2.
Peguemos nos conceitos de esquerda e de direita da forma mais elementar possível, que sem dúvida é pouco precisa, mas que é, ao mesmo tempo, suficientemente operativa para continuarmos a usar os mesmos conceitos 230 anos após a sua criação.
Na dinâmica igualdade versus liberdade, coloquemos a esquerda mais do lado da igualdade e a direita mais do lado da liberdade.
Na dinâmica Estado versus sociedade civil, coloquemos a esquerda mais do lado do reforço do papel do Estado e a direita mais do lado do investimento na sociedade civil.
Na dinâmica mudança do statu quo versus preservação do statu quo, coloquemos a esquerda do lado da mudança (no sentido em que é mais progressista) e a direita do lado da preservação (no sentido em que é mais conservadora).
Qualquer pessoa moderada perceberá que estamos a falar de valores em tensão, todos eles com as suas qualidades e os seus méritos próprios, e que nenhum deles pode ser desprezado em teoria. É óptimo ter liberdade e igualdade. É óptimo ter um Estado eficaz e uma sociedade civil dinâmica. É óptimo ter uma sociedade que evolui e progride, ao mesmo tempo que conserva os seus melhores valores.
É absurdo jogar à esquerda e à direita no campeonato dos bons e dos maus, ou sequer no campeonato da superioridade moral.
É apenas, e sempre, na situação concreta de um país, na avaliação do estado de uma determinada sociedade, ou a propósito de um tema político particular, que o nosso posicionamento ideológico deve ser definido.
A metáfora do duche tem a ver com isto, e é muito simples: no duche existe a torneira da água quente e existe a torneira da água fria. Será que faz algum sentido perguntar qual é a nossa torneira favorita? Gostam mais da torneira da água quente ou gostam mais da torneira da água fria?
Parece-me bastante óbvio que a resposta sensata (e, já agora, a resposta liberal) só pode ser uma: depende da temperatura da água. As duas torneiras são necessárias. Às vezes a água está quente de mais e temos de abrir a água fria; outras vezes a água está demasiado fria e temos de abrir a água quente.
O mesmo pode ser dito das políticas de esquerda ou de direita.
A metáfora do duche serve para explicar que, em termos puramente especulativos, sem a definição concreta de um tempo e de um espaço, perguntar a alguém se prefere a esquerda ou a direita faz tanto sentido quanto perguntar se, quando estamos a tomar um duche, preferimos a torneira da água quente ou a torneira da água fria.
Quando em Portugal olhamos para o descalabro do Hospital Beatriz Ângelo depois de deixar de ser uma PPP, não é difícil perceber que substituir a gestão privada pela gestão estatal, no caso particular do SNS português, é uma tragédia — a água está a escaldar e precisamos de cabeças frias.
Mas quando olhamos para o sistema de saúde americano pré-Obamacare, em que uma percentagem significativa da população era atirada para a miséria se tivesse a infelicidade de sofrer uma doença prolongada e muito dispendiosa, havendo gente a morrer por falta de dinheiro no país mais rico do mundo; defender mais Estado, naquele contexto, parecia ser a única opção sensata — na minha metáfora, chamo a isso abrir a água quente.
A defesa de valores tão abstractos (e ambos meritórios) como a liberdade e a igualdade tem esta mesma lógica.
Se há países onde ainda impera uma mentalidade de matriz marxista e uma Constituição que convida a caminhar para o socialismo, torna-se indispensável clamar por mais sociedade civil e mais liberdade individual — água fria para cima deles, ou seja, para cima de nós.
Se há lugares ou épocas onde o capitalismo dito selvagem e os mercados desregulados exigem que a liberdade de certos operadores seja refreada; ou até momentos em que as desigualdades se tornam imensas, deslaçam a sociedade, e têm mesmo de ser combatidas, então esses momentos exigem uma maior intervenção do Estado — é abrir a torneira da água quente.
3.
A metáfora do duche pode parecer uma banalidade, mas se é uma banalidade ela não é tratada como tal na política portuguesa, em que os partidos continuam a desempenhar papéis cristalizados e a cultivar categorias estanques, pelo menos naquilo que é a encenação mediática do seu posicionamento ideológico.
Às vezes, é tanta a encenação que o conservadorismo até salta o muro tradicional da ideologia, situando-se mais do lado dos partidos da esquerda do que dos partidos da direita. Quem se dê ao trabalho de olhar com atenção, percebe que é precisamente isso que está a acontecer em Portugal neste momento.
A ideia de que a esquerda é mais “progressista” e a direita é mais “conservadora” deixou há muito de ser verdade em Portugal. A esquerda socialista é hoje a força mais conservadora da política portuguesa e, portanto, só é progressista em certas extremidades mediáticas e “fracturantes” — na sua mais profunda essência o actual PS é conservador, e muito conservador; o seu discurso progressista é hoje, sobretudo, um verniz que esconde a sua natureza mais profunda, de partido de poder, que tudo faz para manter e alargar.
É por isso que, antes de ser um problema dos caminhos que Portugal deve seguir, o problema de Portugal é de diagnóstico. É de definição daquilo que ele é hoje, em 2023. E é também um problema de mudança de mentalidades e de luta de “narrativas”, não por acaso uma das palavras preferidas do nosso primeiro-ministro.
Nada como um debate acerca das “narrativas” para esconder as contradições do PS. É que, por baixo da agitação superficial dos dias, há um país paralisado, onde nada mexe. Ou melhor: a única coisa que mexe é a língua, sem parar, como no clássico “eles falam, falam, falam, e não os vejo a fazer nada”. Um país onde o excesso de fala substitui a falta de acção, não porque falar e agir sejam categorias opostas, mas porque esta é uma fala envenenada, nociva, aquilo a que chamamos “paleio”.
Antonio Scurati, que tem vindo a escrever uma trilogia sobre Benito Mussolini, disse que “a primeira promessa dos populistas é sempre a simplificação”. É explicar tudo, e tudo resolver, com fórmulas primárias.
Ora, nada foi tão populista em Portugal na última década quanto a “viragem da página de austeridade”, uma mentira descabelada que foi transformada por António Costa na “narrativa” dos anos da “geringonça”, com o único objectivo de esconder as cativações, as taxas e taxinhas, e de transformar o programa da troika numa opção ideológica de direita, em vez do duche de água fria obrigatório que foi prescrito a todos os portugueses, porque um governo de esquerda ficou sem dinheiro para pagar a conta do gás.
Qualquer estratégia para ganhar o país, para instigar as pessoas a agir e a mudar, implica ultrapassar, vencer, fazer implodir a armadilha do paleio; a falsa retórica ideológica; a prisão das categorias absolutas da direita e da esquerda, que tudo simplificam.
As nossas decisões dependem da temperatura da água. Dependem sempre da temperatura da água.
Portanto, nunca é possível partir para a acção munido de uma cartilha cega de esquerda ou de direita; uma espécie de bala de prata ou uma fórmula que aplicamos cegamente a qualquer problema. Isso não existe.
4.
Uma das maravilhas do liberalismo — e é por isso que ser liberal é uma coisa nos Estados Unidos da América e outra coisa na Europa continental – é a sua enorme plasticidade, porque o liberalismo é um conjunto de princípios e de valores e não um programa de governo. O liberalismo não é a casa de partida, nem é a casa de chegada — é o caminho.
Vida, liberdade e a procura da felicidade. Um conjunto de direitos individuais inalienáveis. O direito fundamental à propriedade privada — um tecto, como escreveu William Pitt, onde pode entrar o vento e a chuva mas onde o rei fica à porta, se for esse o nosso desejo. O respeito pelo mercado livre. Um governo cujo poder deriva do consentimento dos governados.
A beleza destes valores é tão grande que por eles se fizeram grandes sacrifícios, milhões morreram e continuam a morrer, ainda hoje, na Ucrânia. Morrer por princípios e valores abstractos, sem os quais consideramos que a vida não merece ser vivida, é uma loucura que só nos pode espantar quando nos pomos a pensar nisso. E nós, que temos o privilégio de não necessitar de pegar em armas para defender esses valores, temos pelo menos o dever de os promover com energia e vontade renovadas, que é aquilo que francamente tenho dificuldade de encontrar em Portugal.
O país está há demasiado tempo adormecido debaixo de um duche de água excessivamente quente, e parece que só acorda a espaços, quando lhe cortam o gás. Quando isso acontece, chamamos o canalizador estrangeiro, que já vai em três visitas em menos de 50 anos de democracia, e depois de passarmos umas temporadas a duches gelados, volta a água morna, e depois a água quente, e depois a água demasiado quente, e assim sucessivamente, num eterno retorno de modelos de desenvolvimento insustentáveis.
A metáfora do duche tem ainda a vantagem de revelar um outro aspecto fundamental — é que todos nós, que temos de pagar as contas das nossas casas, sabemos bem que a água quente e a água fria não têm o mesmo preço.
A água a que chamamos fria, na verdade, está apenas à temperatura ambiente. É água natural. Quando abrimos a torneira azul, só estamos a gastar água. Mas quando abrimos a torneira vermelha — e reparem que houve um génio anónimo que um dia fez o azul corresponder à direita e o vermelho à esquerda (para verem como isto anda tudo ligado) —, estamos a gastar água e gás ou água e electricidade. Ou seja, há um preço acrescido pelo nosso bem-estar. Tal como há um preço acrescido para diminuir as desigualdades ou fazer crescer o Estado — a carga fiscal portuguesa que o diga.
Isto significa que a esquerda é mais cara do que a direita, tal como a água quente é mais cara do que a água fria.
Promover a igualdade é mais caro do que deixar cada indivíduo entregue a si próprio. Proteger os mais fracos é mais caro do que não fazer nada por eles. As transferências sociais que impedem que milhões de portugueses caiam abaixo do nível de pobreza custam muito dinheiro.
Aquilo a que chamamos Estado Social é uma conquista civilizacional, e não vejo quem à direita o negue. Ninguém está contra pagar um preço por isso — desde que esse preço não nos comece a escaldar; a tornar o Estado ineficiente; a fazer mais mal do que bem.
Mais uma vez: diz-me a que temperatura está a água e eu dir-te-ei que torneira abrir.
Donde, mais do que ser de direita ou ser de esquerda, nós estamos na direita ou estamos na esquerda — num momento, num lugar. São categorias conjunturais e não categorias essencialistas.
Eu estou na direita porque no Portugal de 2023 estou do lado da água fria.
Muitas vezes perdemo-nos em discussões absurdas, que são de tal modo básicas que só parecem existir para evitar discutir o que realmente importa.
Existe uma vastíssima zona de consenso em relação àquilo que entendemos que deve ser o país. Ninguém quer acabar com a escola pública. Ninguém quer acabar com a saúde pública. Ninguém acha que o Estado deve desaparecer para nos maravilharmos com uma sociedade no seu estado natural, sem rei nem roque.
Estas conversas caricaturais e demagógicas apenas dificultam a discussão séria sobre modelos, sobre alternativas, sobre formas mais eficazes de aperfeiçoar o bem comum — mais e melhores oportunidades para todos; um elevador social que funcione; um país com mais riqueza para distribuir. Alguém discorda disto?
Em bom rigor, todos lutamos pela capacidade de aquecer a água e de elevar o bem-estar da sociedade — na justa medida, de modo sustentável e da forma mais eficaz possível. E sobretudo: ninguém discute a necessidade do banho.
Infelizmente, o que mais se faz é pegar em temas politicamente consensuais — a necessidade de um SNS competente ou de uma boa escola pública — e fingir que não o são. E então diz-se que a direita quer destruir o SNS, ou que quer destruir a escola pública, para justificar uma inaceitável incapacidade de fazer diferente e de impulsionar as mudanças que se exigem.
5.
Da mesma forma que esquerda e direita necessitam de um equilíbrio virtuoso, esse mesmo equilíbrio é necessário entre o papel do Estado e o papel da sociedade civil. Mas reparem: nada disto é novo e já deveria estar assimilado. As épocas de maior prosperidade e de maiores conquistas sempre foram acompanhadas dessas dinâmicas entre um poder central eficaz e uma sociedade civil pujante e com capacidade para correr riscos.
Quando se pergunta qual foi a primeira grande PPP portuguesa, a resposta clássica é a Lusoponte, criada em 1994 para construir a ponte Vasco da Gama. Aliás, foi uma PPP que começou logo bem, e à portuguesa: o ministro das Obras Públicas que encomendou a ponte tornou-se mais tarde presidente da ponte encomendada.
Mas, numa perspectiva histórica, a primeira grande parceria público-privada patrocinada pelo Estado português também inclui o nome de Vasco da Gama, só que é o verdadeiro, o que chegou à Índia em 1498: refiro-me, claro está, aos Descobrimentos portugueses.
Nos séculos XV e XVI, o rei e os cofres reais não possuíam os fundos necessários para financiar expedições longuíssimas e gerir um império que se estendia por três continentes. Tiveram de estabelecer acordos com mercadores privados e com os próprios capitães dos barcos, que se lançavam à aventura em troca dos direitos de exploração de certos territórios que descobriam.
Vejam o caso de uma das primeiras “descobertas”, a Madeira (a existência da ilha já era conhecida há muito), no início do século XV, por João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e depois Bartolomeu Perestrelo.
O povoamento começou por volta de 1425, mas em 1440 foi preciso incentivar o desenvolvimento económico da ilha, e a coroa decidiu implementar uma PPP a que na altura deu o nome de “capitania-donataria”. Em 1440, a capitania de Machico foi doada a Tristão Vaz Teixeira. Em 1446, a capitania de Porto Santo foi doada a Bartolomeu Perestrelo. E em 1450, a capitania do Funchal foi doada a João Gonçalves Zarco.
Os três descobridores do arquipélago foram os três primeiros capitães-donatários, o que significou levar famílias e gente para explorar a agricultura e o comércio, em troca de privilégios económicos e poderes administrativos, judiciais e fiscais.
Foram as capitanias-donatarias que construíram as chamadas “levadas”, feitas para transportar a água do lado norte da ilha para o lado sul, onde se encontravam as plantações de cana-de-açúcar, e que são hoje uma das atracções mais populares da ilha da Madeira.
Isto meio milénio antes de Alberto João Jardim.
A estratégia das capitanias-donatarias funcionou tão bem que foi replicada um pouco por todo o lado, em especial no Brasil.
O império português, que muito boa gente imagina ser apenas um grande empreendimento do Estado — ou do Reino de Portugal —, foi, na verdade, mantido com base em inúmeras parcerias público-privadas, para premiar o enorme risco que as tripulações corriam. Sem essas PPP, o império português nunca teria existido, porque o país nos séculos XV e XVI tinha pouco mais de um milhão de habitantes. Não havia nem meios, nem soldados, nem funcionários suficientes.
Hoje somos um país cheio de História, mas falta-nos perspectiva histórica. Por isso, há gente que 500 anos depois ainda se interroga acerca das vantagens de o Estado ter contratos de associação com escolas ou manter a gestão privada de hospitais, como se a competitividade de modelos diferenciados de gestão não fosse, só por si, uma enorme mais-valia.
Mas note-se: há uma diferença entre as PPP dos Descobrimentos e as PPP de, digamos, José Sócrates. Nas primeiras, o privado corria muitos riscos, incluindo o maior de todos, se o barco fosse ao fundo — perder a própria vida. Nas PPP da era Sócrates, segundo nos informam os especialistas, o único barco que ia ao fundo — e foi — era mesmo o Estado.
Em casos como este último, ficamos com o pior dos dois mundos. Um Estado enorme e ineficiente corrompido pelo sector privado. E um sector privado que, dada a dimensão do Estado e o seu acesso ao orçamento e aos fundos europeus, tem mais incentivos a corromper o Estado do que a impor-se num mercado concorrencial. É um daqueles casos em que nem água quente, nem água fria – as duas torneiras estão avariadas.
6.
Como atrás referi, considero que o grande problema português é o estabelecimento de um diagnóstico sério sobre a temperatura da água. Não porque nos faltem diagnósticos — eles superabundam desde, pelo menos, o famoso Relatório Porter, encomendado por Mira Amaral em 1993 —, mas porque tem sido difícil fazer com que sejam assimilados e inscritos na tal “narrativa” do país; a descrição consensual do estado da pátria que aos poucos se transforma em senso comum.
A verdade é que ainda não conseguimos transformar em realidade consensual aquilo que me parece do domínio do óbvio: Portugal tem Estado a mais e sociedade civil a menos; precisa de libertar a Economia do peso fiscal e burocrático; e depois necessita de ir atrás da sábia máxima de Churchill: uma vez assegurado um padrão mínimo de segurança e bem-estar, é deixar “as pessoas em liberdade”. “Saiam da frente e deixem-nas a todas fazer o que melhor sabem.”
Este é o caminho dos liberais, e é algo que tem de ser dito e repetido até à exaustão.
Todos nós sabemos porquê, e o senhor Hayek deixou-o escrito com toda a clareza no último livro que publicou em vida (Arrogância Fatal – Os erros do socialismo), e que ainda recentemente foi editado em Portugal: o grande erro do socialismo é a sua “arrogância fatal”, que deriva da convicção de que um grupo de políticos iluminados pode moldar o mundo à medida das suas ambições e controlar todas as consequências dos seus actos, por mais bem-intencionados que eles sejam.
Não pode. Não consegue controlar. E quando é demasiado ambicioso na sua acção rapidamente se torna ineficiente.
Aliás, para quem desconfia de Hayek, podemos citar José Mattoso no seu último livro, A História Contemplativa: “O comportamento humano é tão diversificado e tão imprevisto que jamais poderemos saber para onde vai a humanidade.”
É por isso que o planeamento central não funciona. É por isso que o principal papel do Estado deve ser o de regulador do mercado, e não de definidor das grandes estratégias de investimento; deve ser o de promover a concorrência e jamais o de proteger os clássicos “centros de decisão nacionais”.
A razão pela qual não devemos nunca prescindir da água fria é a mesma pela qual não devemos nunca prescindir da cabeça fria: temos de ter absoluta consciência das nossas limitações e um respeito modesto por aquilo que ainda não compreendemos.
Olhamos para o mundo natural e espantamo-nos com a beleza do pôr-do-sol ou de uma montanha, e nesse modo bucólico achamos que os grandes valores universais, como a igualdade ou a liberdade inalienável do indivíduo, pertencem à mesma categoria das coisas que vieram com o mundo, sem que tivéssemos feito nada por isso. Não vieram. Tiveram de ser inventadas. Foi preciso inventar conceitos como a igualdade ou a liberdade como hoje a entendemos. Eles não são naturais. Mais: são ideias problemáticas e disruptivas em sociedades hierarquizadas.
Quando o sociólogo Michael Young criou o conceito de “meritocracia”, que hoje anda a ser tão atacado, explicou que a “igualdade de oportunidades é a igualdade de oportunidade para ser desigual”. Igualdade de oportunidades (que a direita aprecia) não é o mesmo que igualdade de resultados (que a esquerda adora), e tudo isto é extremamente complexo, precisa de equilíbrio e de ser temperado — às vezes mais frio, outras vezes mais quente, e a mão sempre na torneira.
7.
Aquilo que demasiadas vezes acontece em Portugal é que entre o quente e o frio fica o morno — e é aí que nos deixamos estar. Se quisermos, o “morno” é o grande “centrão”, que tem muitas qualidades, mas um tremendo defeito — a sua própria inércia.
O “centrão” goza de má fama em Portugal, porque não é de direita, nem de esquerda; não é frio, nem é quente; é gordo e balofo, como o próprio nome indica. Não parece entusiasmar ninguém.
E há boas razões para isso. O “centrão” está identificado com a manutenção do statu quo, com uma grande resistência à mudança, com um viver habitualmente que não entusiasma ninguém.
Mas o centro é equilíbrio e o equilíbrio é uma magnífica qualidade, da qual deriva a ideia de senso comum, e também a Lei Natural que os fundadores do liberalismo tanto apreciavam.
O bom caminho liberal é um caminho centrista e moderado, às vezes mais à esquerda, outras vezes mais à direita – só que perseguido de forma radical.
Um radicalismo de centro. É isso de que precisamos: um radicalismo de centro.
Entendendo eu por “radicalismo” uma defesa enérgica, comprometida, insistente, de um espaço de moderação — e de um espaço de reforma política e institucional. Ou seja, o desafio está em saber como ser moderado sem ser chato. Como ser centrista sem ser acomodado. Como ser apaixonadamente pelo bom senso.
Para isso é preciso ter um espírito reformista sem ter um espírito extremista, que é uma coisa que parece impossível nesta terra, vá lá saber-se porquê.
Ou bem que se é radical — o que significa propor coisas insensatas com muita energia e vontade – ou bem que se é centrista — o que significa ser aborrecido e mortiço na sua sensatez. Faz falta juntar as melhores qualidades dos dois lados.
Por que raio hão-de ser sempre os porta-vozes da extrema-direita ou da extrema-esquerda a parecer que esgotaram o stock de Red Bull da cantina da Assembleia da República antes de entrarem no hemiciclo? Será isso uma fatalidade?
Acho que não é. Acho que é possível ser um moderado apaixonado.
A esquerda é colo. É mais quente.
A direita é empurrão. É mais fria.
Todos precisamos de ambas, de colos e de empurrões, em momentos diferentes das nossas vidas.
Portugal, neste momento, precisa mais de empurrão do que de colo. E espero que esse empurrão possa ser dado por centristas radicais, necessariamente descaídos para a direita dado o estado do país, mas capazes de mudar Portugal de forma sensata e enérgica.
Este ensaio é uma adaptação do texto que foi originalmente apresentado no encontro de 2.º aniversário do Instituto + Liberdade, que decorreu a 11 de Fevereiro de 2023, em Lisboa