Sismo na Turquia e Síria
Eles vivem onde a morte mora. Família de agente funerário turco muda-se para cemitério
Sem mãos a medir, o agente funerário turco Ali Dogru mudou-se, com a família, para o interior do cemitério onde trabalha e onde já sepultou mais de 1200 vítimas dos sismos.
Por entre os túmulos do cemitério de Cankaya, em Iskenderun, no sudeste da Turquia, os quatro filhos menores do agente mortuário Ali Dogru vão tentando abstrair-se da memória da mais recente tragédia que provocou cerca de 48 mil mortes no país. Sem sucesso. Os corpos das vítimas do sismo continuam a chegar à necrópole, em número expressivo, e interrompem o seu recreio.
O cemitério tornou-se, poucos dias após o violento sismo que afectou a Turquia e a Síria, numa estranha espécie de extensão de casa quando a família se mudou para o interior de um autocarro abandonado, no recinto mortuário. O veículo é um lugar seguro, diante da ameaça de um novo sismo; no entanto, fixado naquele local, torna-se talvez dos mais violentos para quem tenta processar o trauma da tragédia.
Ali Dogru, que trabalha naquele cemitério há mais de seis anos, tem uma missão: "Trabalhar dia e noite para terminar este trabalho", conta à Reuters, apontado para a inexistência, no local, de valas comuns. "Não queria que as pessoas chegassem e dissessem que os corpos não foram enterrados." Para além de enterrar os mortos, Ali auxilia as autoridades na tarefa de fotografar os corpos não identificados, ajudando a recolher impressões digitais ou amostras de ADN.
Desde o dia do sismo, 6 de Fevereiro, Ali já sepultou mais de 1200 pessoas. Para conseguir tal feito, teve de comprar maquinaria que tornasse mais rápido o processo de abertura de valas. "Quando era talhante, via as pessoas a trazerem os seus animais para serem sacrificados. Mas impressionou-me muito ver pessoas a transportar os seus filhos, os seus pais [para serem sepultados]."
O agente funerário reconhece que a sua missão expõe os filhos a cenários que, provavelmente, nunca mais esquecerão, porém não encontrou alternativa, uma vez que ninguém poderia acolhê-los noutro local. "Eles viram pessoas com cadáveres nos braços porque estavam comigo", lamenta. "Tenciono levá-los de férias, quando nos restabelecermos."
Hatice, esposa de Ali, refere ter visto também muitos cadáveres em redor do autocarro onde pernoitam. A maioria eram crianças. "Tenciono ir para casa após o Eid al-Fitr", o dia que marca o fim do mês de Ramadão. A família teme que um novo sismo arrase o apartamento onde viviam, que, de acordo com as autoridades, não tem, de momento, danos estruturais que comprometam a segurança de quem vive no interior. "Para onde poderemos ir se sairmos daqui?", questiona. "Só quero a minha casa."