Sismo na Turquia e Síria

Eles vivem onde a morte mora. Família de agente funerário turco muda-se para cemitério

Sem mãos a medir, o agente funerário turco Ali Dogru mudou-se, com a família, para o interior do cemitério onde trabalha e onde já sepultou mais de 1200 vítimas dos sismos.

Mehmet Dogru, 6 anos, brinca dentro de um caixão no cemitério de Cenkaya. SUSANA VERA / REUTERS
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Mehmet Dogru, 6 anos, brinca dentro de um caixão no cemitério de Cenkaya. SUSANA VERA / REUTERS

Por entre os túmulos do cemitério de Cankaya, em ​Iskenderun, no sudeste da Turquia, os quatro filhos menores do agente mortuário Ali Dogru vão tentando abstrair-se da memória da mais recente tragédia que provocou cerca de 48 mil mortes no país. Sem sucesso. Os corpos das vítimas do sismo continuam a chegar à necrópole, em número expressivo, e interrompem o seu recreio.

O cemitério tornou-se, poucos dias após o violento sismo que afectou a Turquia e a Síria, numa estranha espécie de extensão de casa quando a família se mudou para o interior de um autocarro abandonado, no recinto mortuário. O veículo é um lugar seguro, diante da ameaça de um novo sismo; no entanto, fixado naquele local, torna-se talvez dos mais violentos para quem tenta processar o trauma da tragédia.

Ali Dogru, que trabalha naquele cemitério há mais de seis anos, tem uma missão: "Trabalhar dia e noite para terminar este trabalho", conta à Reuters, apontado para a inexistência, no local, de valas comuns. "Não queria que as pessoas chegassem e dissessem que os corpos não foram enterrados." Para além de enterrar os mortos, Ali auxilia as autoridades na tarefa de fotografar os corpos não identificados, ajudando a recolher impressões digitais ou amostras de ADN.

Desde o dia do sismo, 6 de Fevereiro, Ali já sepultou mais de 1200 pessoas. Para conseguir tal feito, teve de comprar maquinaria que tornasse mais rápido o processo de abertura de valas. "Quando era talhante, via as pessoas a trazerem os seus animais para serem sacrificados. Mas impressionou-me muito ver pessoas a transportar os seus filhos, os seus pais [para serem sepultados]." 

O agente funerário reconhece que a sua missão expõe os filhos a cenários que, provavelmente, nunca mais esquecerão, porém não encontrou alternativa, uma vez que ninguém poderia acolhê-los noutro local. "Eles viram pessoas com cadáveres nos braços porque estavam comigo", lamenta. "Tenciono levá-los de férias, quando nos restabelecermos." 

Hatice, esposa de Ali, refere ter visto também muitos cadáveres em redor do autocarro onde pernoitam. A maioria eram crianças. "Tenciono ir para casa após o Eid al-Fitr", o dia que marca o fim do mês de Ramadão. A família teme que um novo sismo arrase o apartamento onde viviam, que, de acordo com as autoridades, não tem, de momento, danos estruturais que comprometam a segurança de quem vive no interior. "Para onde poderemos ir se sairmos daqui?", questiona. "Só quero a minha casa."

Vista aérea sobre o cemitério de Cankaya, onde Ali Dogru já sepultou mais de 1200 vítimas do sismo que afectou a Turquia, a 6 de Fevereiro de 2023
Vista aérea sobre o cemitério de Cankaya, onde Ali Dogru já sepultou mais de 1200 vítimas do sismo que afectou a Turquia, a 6 de Fevereiro de 2023 SUSANA VERA / REUTERS
Asli Dogru, 33 anos, e a sua filha Zuleyha, de 9 anos, brincam no cemitério de Cankaya. São parentes directos do núcleo familiar de Ali Dogru e também se mudaram para o cemitério; vivem numa tenda junto ao autocarro onde reside Ali
Asli Dogru, 33 anos, e a sua filha Zuleyha, de 9 anos, brincam no cemitério de Cankaya. São parentes directos do núcleo familiar de Ali Dogru e também se mudaram para o cemitério; vivem numa tenda junto ao autocarro onde reside Ali SUSANA VERA / REUTERS
Salih Dogru, 12, e Eren Dogru, 14, visitam as campas de vítimas do terramoto, no cemitério de Cankaya, a 12 de Março de 2023
Salih Dogru, 12, e Eren Dogru, 14, visitam as campas de vítimas do terramoto, no cemitério de Cankaya, a 12 de Março de 2023 SUSANA VERA / REUTERS
Sapatos que pertencem a uma jovem vítima do terramoto estão dispostos sobre a sua campa, no cemitério de Cankaya
Sapatos que pertencem a uma jovem vítima do terramoto estão dispostos sobre a sua campa, no cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Agente funerário Ali Dogru, 46 anos, auxilia no enterro de uma pessoa idosa cuja morte não está relacionada com o terramoto
Agente funerário Ali Dogru, 46 anos, auxilia no enterro de uma pessoa idosa cuja morte não está relacionada com o terramoto SUSANA VERA / REUTERS
Salih Dogru, 12 anos, e o seu primo Yavuz Dogru, 9, correm por entre as sepulturas do cemitério de Cankaya
Salih Dogru, 12 anos, e o seu primo Yavuz Dogru, 9, correm por entre as sepulturas do cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Ali Dogru ajuda dois homens a encontrar uma campa numa secção criada para vítimas do terramoto, no cemitério de Cankaya
Ali Dogru ajuda dois homens a encontrar uma campa numa secção criada para vítimas do terramoto, no cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Ali Dogru ajuda na reparação de um cano de água que rompeu junto às sepulturas que foram criadas em resposta ao sismo que abalou a Turquia a 6 de Fevereiro de 2023. O cano rompeu junto à campa de Elif Yasar, que nasceu a 19 de Maio de 2015 e faleceu no dia 6 de Fevereiro; a sua campa está decorada com um vestido do filme Frozen.
Ali Dogru ajuda na reparação de um cano de água que rompeu junto às sepulturas que foram criadas em resposta ao sismo que abalou a Turquia a 6 de Fevereiro de 2023. O cano rompeu junto à campa de Elif Yasar, que nasceu a 19 de Maio de 2015 e faleceu no dia 6 de Fevereiro; a sua campa está decorada com um vestido do filme Frozen. SUSANA VERA / REUTERS
Ali Dogru fala com o seu filho Ertugrul, de 3 anos, enquanto supervisiona os trabalhadores do cemitério de Cankaya
Ali Dogru fala com o seu filho Ertugrul, de 3 anos, enquanto supervisiona os trabalhadores do cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Asli Dogru, 33 anos, a sua filha Zuleyha, de 9, e o seu filho Mehmet, de 6, observam os rapazes das famílias Dogru serem transportados de mota através do cemitério de Cankaya
Asli Dogru, 33 anos, a sua filha Zuleyha, de 9, e o seu filho Mehmet, de 6, observam os rapazes das famílias Dogru serem transportados de mota através do cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Mehmet Dogru, 6 anos, caminha junto às sepulturas das vítimas do sismo, no cemitério de Cankaya
Mehmet Dogru, 6 anos, caminha junto às sepulturas das vítimas do sismo, no cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Salih Dogru, 12 anos, bebe água de uma fonte no cemitério de Cankaya, o local onde vive com a sua família
Salih Dogru, 12 anos, bebe água de uma fonte no cemitério de Cankaya, o local onde vive com a sua família SUSANA VERA / REUTERS
Família alargada janta na tenda que está montada junto ao autocarro onde vive o núcleo de Ali Dogru, no cemitério de Cankaya
Família alargada janta na tenda que está montada junto ao autocarro onde vive o núcleo de Ali Dogru, no cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Hatice Dogru, 43 anos, lava roupa numa das divisões da morgue onde são lavados os cadáveres, no cemitério de Cankaya
Hatice Dogru, 43 anos, lava roupa numa das divisões da morgue onde são lavados os cadáveres, no cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Família socializa no exterior do autocarro e da tenda para onde se mudaram após o sismo, no interior do cemitério de Cankaya
Família socializa no exterior do autocarro e da tenda para onde se mudaram após o sismo, no interior do cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Hatice Dogru prepara o jantar no autocarro onde vive com a sua família
Hatice Dogru prepara o jantar no autocarro onde vive com a sua família SUSANA VERA / REUTERS
Asli Dogru, 33 anos, estende roupa; a sua filha Zuleyha, de 9 anos, observa no exterior da tenda onde vive, no cemitério de Cankaya
Asli Dogru, 33 anos, estende roupa; a sua filha Zuleyha, de 9 anos, observa no exterior da tenda onde vive, no cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
Salih Dogru, 12 anos, e o seu primo Yavuz Dogru, 9 anos, brincam no interior da mesquita que está junto ao cemitério de Cankaya
Salih Dogru, 12 anos, e o seu primo Yavuz Dogru, 9 anos, brincam no interior da mesquita que está junto ao cemitério de Cankaya SUSANA VERA / REUTERS
O talhante Emrullah Dogru, 37 anos, tenta reparar o cadeado que segura a tenta para onde se mudou com a família, no cemitério de Cankaya, após o sismo que abalou a Turquia a 6 de Fevereiro de 2023
O talhante Emrullah Dogru, 37 anos, tenta reparar o cadeado que segura a tenta para onde se mudou com a família, no cemitério de Cankaya, após o sismo que abalou a Turquia a 6 de Fevereiro de 2023 SUSANA VERA / REUTERS