Riad Sattouf: “A vida das pessoas reais é normalmente mais interessante do que a ficção”

O vencedor do Grande Prémio do Festival de Banda Desenhada de Angoulême dá voz a crianças — mas não escreve (só) para elas. “Toda a gente, mesmo os piores canalhas, já foi criança.”

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Riad Sattouf é o autor de séries como O Árabe do Futuro e O Diário de Esther DR

Quando aos cinco anos começou a ler banda desenhada para acompanhar as aventuras de Tintin, Riad Sattouf nem imaginava que 40 anos mais tarde viria a ser distinguido com um dos prémios mais importantes do mundo dos quadradinhos. Em Janeiro de 2023, ainda sem estar à espera, tornou-se o vencedor do Grande Prémio na 50.ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada de Angoulême (FIBD).

Olhar para os quadradinhos de Riad e para o mundo em redor tem muito de semelhante. Para o autor, que falou com o P3 por email, a realidade é uma matéria-prima de excelência: “A vida das pessoas reais é normalmente mais interessante do que a ficção. Mas [ao escrever] mudo muita coisa: exagero, diminuo, tento tornar as situações cómicas. Mudo os nomes, as caras, escondo o real nos meus livros. Mas o cheiro da realidade é algo de que gosto muito.”

Ainda que “sem falsa modéstia” diga que vencer foi uma “surpresa gigante”, o autor de O Árabe do Futuro e Os Diários de Esther não é, de todo, um estranho ao certame. Por duas vezes — em 2010, pelo terceiro volume de Pascal Brutal, e em 2015, pelo primeiro volume de O Árabe do Futuro venceu o Prémio de Melhor Álbum em Angoulême. O Grande Prémio, ainda assim, tem outro sabor. Principalmente porque os galardoados são apontados por outros autores de banda desenhada com obra publicada em França.

Na votação final, Sattouf estava nomeado com a norte-americana Alison Bechdel e a francesa Catherine Meurisse. Em 2016, também esteve na lista de nomeados para o Grande Prémio do festival. Desistiu depois de saber que não havia uma única mulher na corrida pelo prémio. O Grande Prémio do FIBD é um prémio de carreira não monetário, entregue desde 1974 a autores de banda desenhada de todo o mundo.

Desenhar o mundo pelos olhos dos mais pequenos

Riad Sattouf nasceu em Paris, em 1978. Depois de passar a infância na Argélia, Líbia e Síria, voltou a França aos 12 anos. Estudou Artes Aplicadas em Nantes e Animação na Escola de Gobelins, em Paris.

A entrada no universo da banda desenhada fez-se em 2000, quando começou a desenhar a série escrita por Éric Corbeyran Petit Verglas. Mais tarde, séries como Pascal Brutal e a autobiográfica O Árabe do Futuro deram-lhe uma maior visibilidade. De 2004 a 2014, publicou a série A vida secreta dos jovens no jornal satírico Charlie Hebdo. Saiu pouco mais de dois meses antes do atentado ao jornal que matou 17 pessoas, 11 das quais jornalistas.

Em contextos falsamente inocentes e infantis, a obra de Sattouf transborda temas sociais (e centrais) da actualidade como a homossexualidade, a religião e os papéis de género. O Diário de Esther, a história de uma criança de dez anos que não gosta da “música ordinária” que o irmão ouve, que sonha ser famosa, loira e ter um iPad que os pais não lhe dão, serve de exemplo: “A jovem Esther é confrontada, no pátio da escola, com o mundo real e a sua brutalidade. Os adultos costumam recusar-se a ver este aspecto das vidas dos jovens, a sua dureza. É um ângulo cego que, apesar de tudo, diz muito sobre as sociedades futuras.”

Em duas das séries mais bem-sucedidas que assinou, O Árabe do Futuro e O Diário de Esther, dá voz a dois protagonistas juvenis, também eles saídos do mundo real. No primeiro caso, ele próprio. No segundo, a filha de um casal amigo.

“Ao usar personagens jovens, posso explorar temas complexos de uma perspectiva honesta e naïf . Mostrar o mundo pelos olhos de uma criança é algo universal. Toda a gente, mesmo os piores canalhas, já foi criança”, afirma.

E ainda que sejam narrados por crianças e populares entre os mais novos, os livros do autor franco-sírio não são para crianças. “É uma coisa que me irrita nos meus livros. Eu faço-os para adultos, mas, ao longo do tempo, os jovens começaram a interessar-se por eles. Pode pensar-se que são livros para crianças, mas não são, de todo!”, desabafa.

Para lá dos quadradinhos, Riad Sattouf também já pôs um pé no universo do cinema ao realizar filmes como Jacky no Reino das Mulheres e Uns Belos Rapazes (que venceu um César para Melhor Primeiro Filme em 2010), assim como a série adaptada de O Diário de Esther. Actualmente, sem levantar muito o véu, confirma estar a “escrever [mais] um filme”.

Tendo conquistado o Grande Prémio do FIBD aos 44 anos, Riad Sattouf é mais jovem do que os habituais vencedores. Com mais de duas décadas de carreira, parar não é sequer uma opção: Não planeio reformar-me, de todo. Sou um autor jovem”, ri-se.

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