Conselho de administração da Transtejo demite-se. Governo aceita
Decisão foi anunciada na tarde desta quinta-feira, na sequência de um acórdão demolidor do Tribunal de Contas que criticou a compra de navios sem baterias.
O conselho de administração da Transtejo demitiu-se esta quinta-feira. A decisão foi anunciada em conferência de imprensa ao início da tarde, na sede em Lisboa, por Marina Ferreira, presidente do conselho de administração. O Governo já aceitou o pedido de demissão, informou o Ministério do Ambiente e da Acção Climática em comunicado enviado às redacções, pouco depois da conferência de imprensa terminar.
Em breve será anunciada a nova administração da empresa, adianta ainda a tutela.
“O ministro do Ambiente e da Acção Climática constituiu uma equipa dedicada a apoiar a empresa na decisão que garanta a aquisição de baterias, em data aproximada à que estava prevista para a chegada dos barcos. O objectivo é permitir a disponibilidade das baterias nos prazos adequados, de modo a não impactar na operação da nova frota”, lê-se também na nota de imprensa.
Em causa está o facto de a transportadora ter adquirido a uma empresa espanhola dez catamarãs eléctricos por 52,4 milhões de euros para transporte de passageiros entre Lisboa e a margem Sul do Tejo, por concurso público internacional, mas apenas uma bateria — equipamento sem o qual as embarcações não podem navegar. Depois tentou comprar os nove acumuladores em falta, à parte, por mais 15,5 milhões, mas por ajuste directo, à mesma empresa. Para o Tribunal de Contas, que fez um acórdão demolidor a recusar o visto prévio à segunda aquisição, comprar catamarãs sem baterias é equivalente a comprar um carro “sem motor”, uma “bicicleta sem pedais” ou uma “moto sem rodas”.
A presidente do conselho de administração da Transtejo, Marina Ferreira, nega que o órgão que dirige tenha praticado qualquer ilegalidade neste processo, ao contrário do que concluíram os juízes do Tribunal de Contas. “Gerir implica correr riscos de uma forma calculada”, afirmou a gestora. “A nossa actuação defendeu o interesse público. Fizemos a escolha que achámos melhor para o erário público”, garantiu também. “Estou triste”, terminou, lamentando a “falta de respeito” dos juízes pelos administradores da transportadora. Para a gestora, as considerações do Tribunal de Contas são “ofensivas e ultrajantes”.
Quanto à chegada dos navios, Marina Ferreira disse que conta ter, pelo menos, um novo catamarã até ao final do ano nas ligações do Seixal. “Não me parece impossível”, referiu, ao mesmo tempo que considerou que o período de “oito meses parece razoável” para fazer o concurso público para adquirir baterias exigido pelo tribunal. E acrescentou que “até ao Verão as estações de carregamento” deverão estar instaladas naquela cidade. “O navio funciona e está pronto para servir.”
Para o Tribunal de Contas, “não se pode sequer falar em navios sem as baterias, como não se pode falar, por exemplo, em navios sem motor ou sem leme. Isto porque elas constituem uma parte integrante desses navios”.
Os juízes não se limitaram, contudo, a chumbar a compra das baterias, à parte e por ajuste directo, que a Transtejo pretendia fazer. Consideram que todo o negócio se revela de tal forma lesivo do interesse público que remeteram as suas conclusões para o Ministério Público, para eventual apuramento das responsabilidades financeiras ou mesmo criminais dos gestores da transportadora fluvial. Sobre essa possibilidade, Marina Ferreira respondeu aos jornalistas que a equipa demissionária terá se “defender” e “dar todas as informações” sobre o processo de aquisição.
Os juízes escreveram que a transportadora enganou o Tribunal de Contas: “Tinha perfeito conhecimento de que estava a faltar à verdade ao tribunal quando disse que iria recorrer a um concurso autónomo para o fornecimento das baterias, induzindo-o em erro”. E foi graças a isso, lamentam, que conseguiram que o primeiro contrato, para a aquisição dos catamarãs, fosse visado. “Os pressupostos em que o tribunal tomou a decisão de concessão de visto foram incorrectos. Se tivessem sido prestadas ao tribunal as informações correctas — como deveria ter sido feito — a decisão do tribunal poderia ter sido a de recusa do visto.”
Apesar disso, a presidente demissionária garantiu: “Não gastámos um tostão que não tivesse sido validado pelo Tribunal de Contas.” Foi o caso da compra dos catamarãs. E afirmou mesmo que, se pudesse voltar atrás, teria feito tudo da mesma forma, uma vez que a compra dos acumuladores à parte era a opção mais económica na altura em que foi tomada a decisão. Só que depois surgiu a pandemia e com ela vieram as dificuldades de fornecimento e o aumento de preços, agravados, mais tarde, pela guerra na Ucrânia.
“O comportamento da Transtejo, com a prática de um conjunto sucessivo de decisões que são não apenas economicamente irracionais, mas também ilegais, algumas com um elevado grau de gravidade, atinge o interesse financeiro do Estado e tem um elevado impacto social. Que lhe é directa, e exclusivamente, imputável”, pode ler-se no mesmo acórdão, que descarta várias das explicações que lhe foram fornecidas pela transportadora, entre as quais a de que que quando [o conselho de administração] percebeu que, se usasse o sistema de leasing para o negócio, perderia o acesso a fundos comunitários, optou pela compra.
A Transtejo admite que, quando escolheu a Astilleros Gondan para fornecer os navios, ficou dependente da sua solução para os acumuladores, uma vez que qualquer outra obrigaria a alterar o projecto de construção das embarcações e ainda a uma nova certificação marítima, “com riscos de perda dos fundos europeus”.
Nenhuma outra solução do mercado poderia substituir a apresentada pela vencedora do concurso público internacional, “pelo que a Transtejo ficou adstrita” ao fornecimento por ajuste directo, alega a transportadora, explicando que dois dos outros concorrentes também precisariam de recorrer ao mesmo fabricante de acumuladores, a Corvus Energy – incluindo o segundo classificado, os Estaleiros Navais de Peniche, que tentaram, sem sucesso, impugnar o concurso em tribunal.
A transportadora também se justifica com um cenário macroeconómico marcado pelas flutuações do câmbio do dólar norte-americano face ao euro e ao aumento constante do preço mundial do lítio. Já o tribunal diz que um negócio deste tipo colocaria a transportadora na dependência do preço que quisessem cobrar os espanhóis durante toda a vida útil dos veículos, de 16 a 22 anos, uma vez que será preciso proceder à sua substituição num prazo mínimo de sete anos.
O calendário inicial previa que as embarcações tivessem começado a operar no ano passado. A transportadora disse ao tribunal que sem a chegada ao estaleiro dos packs de baterias “não é possível prosseguir com a conclusão de mais navios”.