Um carrossel de burros, sem ofensa para o animal de quatro patas
Ao menos em Portugal os póneis já se livraram dos carrosséis. Mas por mais voltas que dê o ser humano, acaba sempre por ser o único animal num carrossel.
Quando eu era pequena, tinha talvez uns sete ou oito anos, os meus pais levavam-me uma vez por ano à Feira Popular de Lisboa. A ida era sempre precedida por vários dias de agitação. Saber que podia andar em diferentes carrosséis, comer algodão doce e ficar a olhar para as dezenas de cores vivas e em movimento dos carrinhos de choque enchia-me de entusiasmo e alegria puros.
Um dos divertimentos que nunca entendi, e que me causava já em criança fascínio e pena, era o carrossel dos póneis verdadeiros. Não me lembro de quantos póneis tinham amarrados à estrutura circular, seriam talvez quatro ou cinco animais tristonhos que passavam o dia às voltas de relógio, com a intermitência de levarem ou não crianças em cima. Esta memória estava completamente soterrada até há uns dias, quando li um texto do Rodrigo García, dramaturgo argentino, que relata uma experiência praticamente idêntica à minha mas do outro lado do Atlântico, na Argentina.
Observar os póneis às voltas no carrossel foi das coisas mais tristes que já vi na vida. Os pequenos equídeos tinham uns olhos cansados e tristes, e pareciam indiferentes aos risos das crianças e ao escárnio dos adultos sobre os excrementos que iam deixando em movimento na plataforma do carrossel. Tenho uma fotografia montada num desses pobres animais. Eu e o meu primo, sorridentes, com bonés postos, o meu vermelho do Benfica, como o meu pai queria, e o do meu primo verde do Sporting. A inimizade dos pais estampada na cabeça dos filhos, neste caso eu e o meu primo, completamente alheios a rivalidades futebolísticas. Estamos a rir na fotografia. E acredito que nos estivéssemos a divertir, embora tenha noção de que aquilo na altura me fazia impressão.
Os póneis não gostavam daquilo, era certo. Não gostavam da música infantil alta, aos berros, das luzes estridentes do carrossel, e certamente que aquele compasso de relógio os martirizava até ao limite da sanidade que qualquer animal merece e pode ter. Nunca mais vi desses carrosséis com animais vivos. Felizmente não voltei a encontrá-los. Os seres humanos arranjam sempre formas de escravizar e maltratar os animais. Há um sadismo hierárquico na natureza que nós, humanos, temos usado com prazer. Como se os bichos fossem coisas. É bizarro.
Ao menos em Portugal os póneis já se livraram dos carrosséis. Mas por mais voltas que dê o ser humano, acaba sempre por ser o único animal num carrossel, no meio disto tudo. A maldade para o humano é como um carrossel. Não de póneis, mas de burros. Sem ofensa para o bicho de quatro patas.