Óscares 2023: o triunfo do “multiverso”

O sucesso de Tudo em Todo o Lado, que exala “positividade”, não suscita mistério algum, os Óscares, tudo espremido, raramente não caem no filme que toque melhor a música do tempo presente.

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Michelle Yeoh, a actriz principal de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo EPA/CAROLINE BREHMAN

Então, e não é que tenha sido uma surpresa, Hollywood decidiu cobrir de glória – sete Óscares, incluindo Melhor Filme, Melhor Realização, Argumento Original, Actriz principal e Actriz secundária – o “multiverso” de Daniel Scheinert e Daniel Kwan em Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo. O escapismo irrealista mas inapelavelmente “positivo”, a proposta mística de universos paralelos onde se pode sempre reparar o que não corre bem “neste” universo, o tempero de uma “estranheza” (de uma “weirdness”, palavras tanta vezes repetidas a propósito do filme durante a cerimónia, como se ninguém tivesse outra nomenclatura para o descrever) que política e socialmente pode ter inúmeros significados, e ainda, no que é provavelmente o aspecto mais simpático desta consagração, a possibilidade dos prémios para duas actrizes sexagenárias (Michelle Yeoh, a principal, Jamie Lee Curtis, a secundária): não fomos fazer contas, mas é bastante possível que a média etária dos prémios femininos de representação nunca tenha sido tão elevada.

O sucesso de um tal filme, que exala “positividade” por todos os poros, não suscita mistério algum, os Óscares, tudo espremido, raramente não caem no filme que toque melhor a música do tempo presente. Curioso é que aquele que durante algum tempo pareceu ser o grande rival do filme de Scheinert e Kwan (A Oeste Nada de Novo, de Edward Berger) seja um filme diametralmente oposto: é muito postiço e académico, mas esta nova versão do livro de Remarque pareceu cumprir, durante a cerimónia, o papel de lembrete da fealdade inescapável da realidade, ser o convidado sorumbático ao lado do convidado eufórico.

A partir de certa altura percebeu-se que Hollywood ia tombar para a euforia, mas o filme de Berger (ao todo, quatro prémios) também cumpriu outro papel: se tem dinheiro americano (também é um “filme Netflix”, o mais coberto de Óscares até hoje), é essencialmente uma produção europeia, maioritariamente alemã, pelo que exprimiu aquela “abertura” de Hollywood, em tempos recentes, aos filmes vindos de outras partes do mundo, como que querendo dizer que os Óscares já não são um fenómeno exclusivamente anglo-americano como foram durante muito tempo.

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Filme favorito levou sete dos 11 Óscares para que estava nomeado.

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Os favoritos de muita gente — Tár, ou Os Fabelmans — foram completamente ignorados, e a dívida de gratidão de Hollywood para com Top Gun: Maverick ficou saldada com o Óscar de melhor som. Brendan Fraser recebeu o prémio de melhor interpretação masculina (por A Baleia), o único prémio de interpretação que escapou a Tudo em Todo o Lado (outro dos seus actores, Ke Huy Quan, recebeu o de melhor actor secundário), e os prémios de Fraser e Yeoh, até pela maneira como os agradeceram, pareceram também uma maneira de Hollywood celebrar “histórias”, histórias de vida e de carreira pouco habituais e algo acidentadas.

Sem cenas de pugilato impromptu, a cerimónia correu numa estranha mistura de tédio e eficácia, relativamente mais ritmada do que noutros anos mas sem nada de muito interessante – o mais perto que se esteve do “happening”, e do “happening” político, foi quando subiu ao palco (e ao microfone) Yulia Navalnaya, acompanhando a equipa de Navalny, o filme sobre o seu marido dissidente actualmente preso na Rússia que ganhou o Óscar de melhor documentário.

Um breve sobressalto desagradável: uma piada de Jimmy Kimmel sobre Robert Blake, que acabou de morrer, e depois nem foi incluído na montagem do in memoriam (onde estava Godard mas não estava Straub), sugerindo que a “cancel culture” é mais forte do que os tribunais (que o absolveram).

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