Marcelo sobre habitação: “É muito bonito fazer leis, mas depois as leis não se aplicam”

Marcelo receia que o pacote do Governo para a habitação comece mal por falta de envolvimento das autarquias e de capacidade da máquina do Estado para o executar

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Habitação: “É fundamental saber se as propostas são concretizáveis”, defende Marcelo

Para o Presidente da República, o tempo concedido à discussão pública do pacote legislativo do Governo para a habitação é demasiado curto, mas o que mais o preocupa é a sua eficácia — ou seja, a sua exequibilidade. Marcelo promete fazer pontes entre as propostas do PS e do PSD, mas não abdica de analisar as eventuais ameaças à Constituição.

O Presidente comparou o pacote de habitação que foi apresentado pelo Governo a um melão. Agora que já se abriu o melão, gostou?
Até temos dois melões, o melão do Governo e o do PSD. Só que o do Governo está aberto, o do PSD ainda não está aberto. A primeira observação a fazer, óbvia, é que se trata de um problema fundamental e urgente. Segundo, que, por isso mesmo, os grandes partidos alternativos têm obrigação de ter uma posição sobre isso. É de louvar que ao fim de sete anos de governo, o Governo tenha apresentado um pacote desta dimensão.

Julgava que o Presidente iria criticar o Governo pelo facto de o fazer sete anos depois, olhando para a relevância desse assunto...
Houve medidas várias, pontuais, mas é preciso também dizer o seguinte: o Governo — e isto não é pôr a mão por baixo, hoje até estou a pôr a mão muito pouco por baixo, como vêem — apanhou, apesar de tudo, o controlo do défice, uma crise no sistema bancário, a pandemia, e, quando ia levantar a cabecinha, a guerra. Não há muitos governos que tenham apanhado tanta coisa junta. Isto para dizer o seguinte: do melão do Governo nós já podemos retirar algumas ideias, e a primeira ideia é que dar sete dias para discutir não sei quantos diplomas, depois de sete anos de espera, é uma coisa do outro mundo.

Há pouco tempo para discussão...
No caso do melão do PSD, há um pacote apresentado, mas ainda não há diplomas, foi mais recente. Em qualquer caso, lendo um e outro, tirei as seguintes conclusões. Primeiro: há pontos de convergência em matéria administrativa, simplificação, flexibilização, licenciamentos, desburocratização, no que diz respeito a construção, nomeadamente para habitação. Há espaço para conversa. Segundo: incentivos fiscais à iniciativa privada, há espaço para conversa. É evidente que o PSD vai mais longe do que o PS, mas há espaço para conversa. Terceiro: necessidade de aumentar o investimento público em habitação, o que está no PRR e para além dele e de 2026. Aí o Governo vai mais longe, o PSD é menos publicista e estatista, mas ambos convergem na ideia.

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Daniel Rocha

Onde é que surgem as divergências? Surgem primeiro no património público devoluto. Não existe no plano do Governo e existe no plano do PSD. Depois, nas soluções encontradas relativamente a alojamento local, arrendamentos, regimes de arrendamento. Aí há pontos de vista diferentes... Confesso o seguinte: como Presidente, vou olhar para isso vendo o consenso que é possível fazer. E vou olhar sobretudo para a eficiência do que é proposto. Dir-me-ão: mas não vai olhar para a constitucionalidade? Também vou. Por exemplo, conceitos como: onde a lei dizia "não haver consumo de água ou de electricidade" passar agora a dizer "consumo baixo". O que é um consumo baixo? Depende da capacidade financeira e económica da pessoa. Consumo baixo é uma falta de densificação do conceito num tema sensível.

O arrendamento coercivo é inconstitucional?
A questão é a seguinte: se houver um certo tipo de conceitos que são utilizados para limitar o direito de propriedade privada que não estão suficientemente densificados, convém densificar em termos de ficar claro que não atinge a Constituição. Agora, para mim, o fundamental não é o problema doutrinário ou ideológico. Haverá sempre diferença entre a direita e a esquerda. Não. É saber se as fórmulas que propõem são concretizáveis.

Ou, por outras palavras, se o Estado as consegue concretizar...
Exactamente. Sou professor de Direito: é muito bonito fazer leis, mas depois as leis não se aplicam. O pacote do Governo, no arrendamento coercivo, baseia-se em duas ideias: a primeira é que são os municípios que vão descobrir as casas devolutas. Já se percebeu que os municípios não vão descobrir. Já vários presidentes disseram que não têm meios para descobrir, a não ser uns poucos milhares de casas devolutas. Não têm a máquina, não sei se não têm vontade, não participaram. Tenho dúvidas de que o processo não comece mal.

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