Covid-19: responsáveis italianos tentaram proteger imagem do país na primeira vaga
Mensagens de políticos e outros responsáveis revelam que Itália quis explorar a ideia de que o primeiro caso na Europa tinha surgido na Alemanha. E testar toda a gente era “a treta do século”.
Uma investigação do Ministério Público italiano revelou que políticos italianos e responsáveis de saúde do país tentaram proteger a imagem de Itália nos momentos iniciais da pandemia de covid-19 e questionaram a utilidade da testagem em massa da população.
As mensagens, sobretudo de Whatsapp e Telegram, obtidas no âmbito de uma investigação sobre a actuação do Governo e das autoridades de saúde no início da pandemia de SARS-CoV-2, mostram também que alguns dos principais intervenientes na abordagem italiana ao novo coronavírus brincavam sobre a responsabilidade do país na propagação do vírus em outros países europeus.
A investigação, por suspeitas de “epidemia culposa agravada” e homicídio culposo devido à forma como o governo de Itália no início da pandemia, especialmente em Bergamo, incide sobre o então primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, o antigo ministro da Saúde, Roberto Speranza, e outros 17 responsáveis.
De acordo com mensagens lidas pelo britânico The Guardian, a 5 de Março de 2020, mais de quando Itália já era o epicentro europeu da pandemia, com perto de 50 mil casos confirmados, Roberto Speranza terá dito a um colega que o país “devia explorar” uma notícia que indicava que o primeiro caso detectado na Europa teria sido na Alemanha. A intenção seria proteger a imagem de Itália no panorama internacional.
O jornal italiano Corriere della Sera noticiou também esta semana que os responsáveis máximos questionaram durante bastante tempo a utilidade dos testes em massa à covid-19. A 22 de Fevereiro, um dia depois da primeira morte confirmada em Itália, o presidente do Instituto Superior de Saúde de Itália, Silvio Brusaferro, falava com o director do Departamento de Medicina Laboratorial de Udine, Francisco Curcio, negavam a utilização massiva dos testes antigénicos.
A resistência à estratégia de testagem em massa persistia quase um mês depois, a 15 de Março, quando o país já somava mais de 1800 mortes e 25 mil casos: director-geral adjunto da Organização Mundial da Saúde (OMS), Ranieri Guerra, disse nesse dia a Brusaferro que testar toda a gente era “a treta do século” e referiu que tinha falado com o director da Unidade de Doenças Infecciosas do Hospital Luigi Sacco, em Milão, para o dissuadir de propor testes para todos.
As conversas que estão a ser analisadas pelo Ministério Público de Bergamo também revelam falta de confiança de alguns intervenientes em certos responsáveis de saúde, como dúvidas sobre a capacidade do então secretário-geral do Ministério da Saúde, Giuseppe Ruocco, para lidar com a situação, refere o Corriere della Sera.
O mesmo Giuseppe Ruocco, revela o The Guardian, pareceu tratar com ligeireza a detecção de casos entre cidadãos europeus que regressaram aos países vindos de Itália. “Hoje entregámos dois casos de covid-19 à Áustria, um a França e um a Espanha… e talvez um à Alemanha”, escreveu a 6 de Março.
A investigação em curso foca-se sobretudo numa possível falha de actuação das autoridades de saúde na região da Lombardia, a mais atingida pela primeira vaga de covid-19 na Europa. Os procuradores de Bergamo estão a investigar se os responsáveis locais tomaram as medidas adequadas para mitigar a propagação do vírus. Ao contrário de outras províncias da Lombardia, que entraram em quarentena logo após a detecção dos primeiros casos, Bergamo só entrou em confinamento duas semanas depois.
A província registou um excesso de seis mil mortes durante a primeira onda, e os procuradores dizem que quatro mil podiam ter sido prevenidas com a imposição atempada da quarentena obrigatória.
Sobre os dias anteriores ao isolamento da região da Lombardia, o Guardian revela uma outra conversa entre dois responsáveis de saúde, Aida Andreassi e Marco Samoiraghi, que parece indicar que as autoridades tentaram reter a verdade acerca da gravidade da situação.
“Sabes o que disse o presidente [da Lombardia]?”, escreveu Andreassi. “Não podes dizer a verdade. Eu disse ‘Bem, é como se estivéssemos na China’. Ele respondeu que somos piores que a China – pelo menos lá há uma ditadura”.
A investigação debruça-se também na desactualização do plano nacional italiano de resposta a uma pandemia, que não sofria qualquer alteração desde 2006, provocando uma primeira resposta “caótica, improvisada e criativa” à covid-19.