Há centros de saúde com adesão à greve na ordem dos 90%, diz Federação Nacional dos Médicos

Várias centenas de profissionais de saúde concentraram-se à porta do Ministério da Saúde em Lisboa. Médicos pedem melhores condições salariais e de trabalho.

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A greve dos médicos convocada pela FNAM decorre quarta e quinta-feira MATILDE FIESCHI

João Machado tem poucas dúvidas de que quer ser médico para o resto da vida. "Mas às vezes tenho a sensação de que as pessoas não querem que eu faça isto." Aos 27 anos, está a meio do internato de Medicina Geral Familiar em Évora. É de Vila Nova de Famalicão, por isso, a distância de casa é grande — as saudades também —, que acumulam com as longas jornadas no centro de saúde.

"Não sei até que ponto isto está a contribuir para a minha saúde. É muito sacrifício pessoal, muitas horas de estudo, muito trabalho. E custa. Não é pelo trabalho em si, é pelas condições que oferecem. Eu adoro o que faço. Mas sempre que olho para aquilo que tenho no centro de saúde, para a forma como somos tratados, pelo que temos de fazer com os recursos que temos — que são tão poucos e tão escassos — é um choque muito grande", diz o jovem médico.

João faz parte das centenas de médicos que esta quarta-feira se mobilizaram à frente do edifício do Ministério da Saúde, no centro de Lisboa, a desafiar o ministro Manuel Pizarro a ir ouvir as suas reivindicações. Este foi também o primeiro de dois dias de greve, convocada pela Federação Nacional dos Médicos (FNAM) — o Sindicato Independente do Médicos demarcou-se do protesto por estar ainda em negociações com o Governo) —, que considerou a adesão "maciça". De acordo com a presidente deste sindicato, Joana Bordalo e Sá, a paralisação rondou os 85% a 90% em algumas unidades de cuidados de saúde primária.

Houve mesmo casos, no Alto Minho e Trás-os-Montes, em que a adesão à greve (a primeira depois da pandemia) chegou "aos 100%". "A adesão foi, de facto, maciça. Em termos dos cuidados de saúde primários, a adesão ronda os 85/90% e temos zonas do país onde foi de 100%, como no Alto Minho, Trás-os-Montes, zonas aqui de Lisboa, os Açores. Houve unidades onde os próprios colegas fecharam as unidades porque vinham a caminho de Lisboa", disse.

Nos hospitais e ainda sem ter todos os dados, Joana Bordalo e Sá diz ter tido uma "adesão importante nos blocos operatórios". Houve blocos encerrados, a funcionar apenas com os serviços mínimos, "que estão a ser cumpridos", notou.

A greve terminará à meia-noite de quinta para sexta-feira. E o médico João Machado assim continuará. "Olho para o facto de estarmos a trabalhar praticamente das oito às oito todos os dias, de não ter qualquer reconhecimento do ponto de vista salarial. Fazemos 12 horas por dia, 50, 60 horas por semana quando é necessário mesmo não estando a trabalhar em urgência. Trabalhamos o máximo que conseguimos e ainda conseguimos ter reduções salariais quando a restante função pública aumenta. É como se desvalorizassem o trabalho de um interno. Somos olhados pelos utentes como estagiários, mas somos médicos e fazemos o mesmo trabalho que os outros", observa.

Entre as reivindicações dos médicos está precisamente a renegociação da carreira médica e da respectiva grelha salarial, que inclua um horário base de 35 horas, a dedicação exclusiva opcional e majorada e a consideração do internato médico como primeiro grau da carreira. Mas também a revisão das normas de organização e disciplina do trabalho médico, a reposição dos 25 dias úteis de férias por ano e dos cinco dias suplementares, quando forem gozados fora da época alta, assim como a redução do tempo normal de trabalho no serviço de urgência das 18 para as 12 horas.

Nova reunião negocial

João Machado ganha cerca de 1300 euros líquidos por mês. Por isso quando olha para o salário e para as condições que são oferecidas noutros países, emigrar começa a passar pelos seus planos. "Lutamos estes anos todos. Fizemos seis anos de curso, um ano comum, quatro, cinco ou seis anos de especialidade para chegarmos a especialista. Eu quero trabalhar no SNS. Mas não sei até que ponto quero continuar cá."

Miguel Cunha também já fez as contas e concluiu que a filha médica de medicina geral e familiar ganhava, no primeiro ano de internato, o mesmo que ele, quando há mais de 30 anos começou na profissão. "Estava a ganhar mais ou menos o que eu ganhava há 30 anos no primeiro ano da especialidade de pediatria", afirma este médico pediatra que saiu de Chaves às sete da manhã para "lutar pelo SNS".

"Os vários governos têm vindo a deixar cair uma coisa tão importante como é o SNS. Estão claramente a querer destruir o SNS para promover a medicina privada", critica o médico de 59 anos.

Joana Pereira, de 32 anos, e Carolina Gomes, de 28, internas de Medicina Interna no Hospital de Vila Franca de Xira também estão em greve "pela valorização do trabalho, da formação". "É preciso fidelizar médicos ao público", diz Joana, sentindo que o esforço de tantos anos não tem sido reconhecido e que é urgente travar a saída de profissionais para o sector privado.

"Temos um bloco de quatro a seis horas de consulta, um bloco de 12 horas de urgência que nunca são 12 horas. Chegam a ser dois por semana, mais o internamento. Entramos às 8h30 e nunca saímos à hora que é suposto. Devíamos sair às 17h e saímos às 19h ou 20h. Muitas vezes para entrar às 8h30 para fazer urgência", observa.

Os médicos bem gritaram "Manuel Pizarro, vem à janela, os teus colegas estão em guerra". "Sabemos que o senhor doutor Manuel Pizarro está aqui neste edifício e convidamo-lo a descer e a estar aqui connosco, porque é nosso colega e sabe muito bem qual é o problema dos médicos no Serviço Nacional de Saúde e porque é que todos os dias médicos saem do SNS", alertou Joana Bordalo e Sá. Mas ninguém do ministério apareceu.

Na próxima semana, no dia 16, haverá nova reunião entre o ministério e as estruturas sindicais. Joana Bordalo e Sá diz querer "levar a negociação a bom porto", mas que não aceitará "negociar perda de direitos".

Sabe que estes dois dias de greve provocarão transtorno a utentes e doentes, mas acredita que "a luta dos médicos por condições de trabalho dignas e salários justos é também uma luta pelos utentes e pela melhoria do SNS que os serve".

​Na manifestação estiveram presentes dirigentes políticos como o secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, e Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, que quiseram estar ao lado da luta dos médicos e alertaram para a necessidade de o Governo investir no SNS e nos seus profissionais. Assim como a secretária-geral da CGTP, Isabel Camarinha, que apelou para o "reforço do SNS" e criticou a "degradação das condições de trabalho" dos profissionais da saúde.

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