Este é o jornal de um activista

Ai Weiwei recusou-se a ser um espectador no planeamento e na montagem da edição do 33.º aniversário do PÚBLICO. Foi ele quem conduziu o processo e o nosso trabalho, de forma metódica e assertiva.

Foto
Map of China, uma obra de Ai Weiwei, datada de 2006 Ai Weiwei Studio

A memória do pai a reescrever textos do Diário do Povo — um ventríloquo do pensamento de Mao Tsetung — terá influenciado Ai Weiwei a aceitar o convite para dirigir esta edição de aniversário do PÚBLICO. Como confessa no editorial que escreveu, o artista preservou essa imagem de Ai Qing, no seu desterro com os filhos em Xinjiang, onde foi “condenado” a limpar latrinas, embora fosse um conceituado poeta na China de então.

Nos anos 80, “desertou”, por já não suportar viver em Pequim. Ai Weiwei sobreviveu como artista de rua em Nova Iorque; adaptou-se. Numa noite escaldante, os habitantes de East Village reagiram com fúria ao recolher obrigatório e a polícia não se conteve. Nas suas memórias, 1000 Anos de Alegria e de Tristeza, conta isto: “No meio do caos, eu tirei muitas fotografias — sobretudo de cabeças que ficavam a sangrar devido aos bastões dos polícias.” Uma delas era a de um anarquista de palmas abertas, nas quais escrevera “fora Koch” (o mayor da cidade).

Intuindo o seu significado, o artista ligou para o The New York Times e uma das suas fotos saiu entre as notícias locais do jornal. Apesar de banal, diz, a publicação da imagem permitiu-lhe, pela primeira vez, “estabelecer uma relação com a cidade”. Tivera a certeza sobre a “necessidade de manter os direitos e liberdades perante ameaças e violência” e deixara de ser “um espectador”.

Neste contexto de guerra e de tensão global, de permanente ameaça à democracia e aos direitos humanos, convidámos o artista, activista e dissente para nos ajudar a reflectir com os leitores sobre o que mais nos preocupa. Ao longo de reuniões presenciais, e de muitos emails trocados, cresceu um conceito: "Vida ou Morte." É isso que, segundo o artista, une os dez temas e as dez frases, uma para cada tema, que serviram de mote a esta edição e às entrevistas, reportagens e reflexões que ela contém.

O artista desenhou, em exclusivo para o PÚBLICO, os caracteres chineses que definem cada tema, escreveu um pequeno texto para cada um, escolheu as fotografias, entre imagens suas e das suas obras, e decidiu qual seria a primeira página da edição impressa. Assinou o editorial e fez uma entrevista a si próprio.

Ai Weiwei desafiou-nos sempre a fazer propostas e a melhorá-las e recusou sempre, sem hesitar, o que não lhe interessava: participar numa conferência ou gravar um editorial em vídeo, por exemplo. Discutiu connosco, quase palavra a palavra, a notícia que dava conta de que seria ele o director por um dia e chamou-nos, num sábado de manhã, a Montemor-o-Novo, onde reside, para esclarecermos as suas dúvidas sobre a primeira página em papel.

Ai Weiwei recusou-se a ser um espectador no planeamento e na montagem da edição, conduziu o processo e o nosso trabalho, de forma metódica e assertiva. Afinal, ele dirigiu o jornal sem nunca deixar o Alentejo. Este é o PÚBLICO de Ai Weiwei.

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