Porto Editora, descolonize-se

Até quando o Ministério da Educação e as autoridades competentes que tanto alarde fazem sobre a interculturalidade e a lusofonia se absterão de fazer as mudanças que têm de ser feitas?

Passado cerca de um ano do artigo “'Descobrindo' o Manual Colonial", volto ao assunto, desta vez para falar sobre como as representações dos povos originários do Brasil nos manuais escolares são sintomáticas da profunda colonialidade que ainda estrutura o imaginário coletivo.

A páginas tantas, no manual HGP em Ação, 5.º ano, da Porto Editora – o mais utilizado no presente ano letivo (328 escolas, 28% do total de estabelecimentos que oferecem esse ano escolar) –, temos uma colorida ilustração que, em primeiro plano, apresenta uma criança indígena que se dirige sorridente ao leitor dizendo num balão de fala: “Olá, o meu nome é Moacir e hoje foi um dia de festa na minha aldeia.”

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DR

Seria cómico se não fosse trágico, pois no pano de fundo temos a chegada das naus e navegadores portugueses às terras que viriam a ser o Brasil. Festa? Mas quem é que tem a ideia peregrina de chamar àquilo uma “festa”? É verdade que, mais adiante, Moacir refere sobre aqueles homens: “Mostraram-se muito interessados no nosso ouro e prata”. Mas não se levanta o véu sob a violência infligida aos povos indígenas. É preciso dizer que, se esta imagem se destaca pelas doses cavalares de romantização da violência colonial, noutros manuais é também comum, por um lado, a omissão da história dos povos originários do Brasil e da sua resistência e, por outro, a minimização da violência da colonização portuguesa do Brasil.

Se eu tivesse de indicar a forma mais comum de estes pilares do eurocentrismo acontecerem seria, sem dúvida, a utilização sistemática da palavra “descobrimentos” para referir a colonização. Essa é uma constatação a que chego todos os anos quando analiso o eurocentrismo nos manuais escolares de História com as e os estudantes.

Noutro lugar, o mesmo manual da Porto Editora exibe uma fotografia contemporânea de duas crianças indígenas. Na legenda que acompanha a imagem diz-se o seguinte: “Ainda existem comunidades de índios no Brasil, hoje em dia.” Ensina-se, assim, implicitamente, uma escala da humanidade que vai dos pretensamente primitivos (eles) aos civilizados (nós, portanto) e, como bem assinalou uma aluna minha numa das discussões que tivemos em aula, dá a entender que eles, sendo supostamente de outro tempo, já não deveriam existir, é quase como se aguardássemos, com naturalidade, a sua morte e extinção.

Sabe-se que a chegada dos europeus representou o quase extermínio dos povos originários do Brasil, através de conflitos armados, da transmissão de doenças, da escravatura e da apropriação dos seus meios de vida. De cinco milhões estimados para o século XVI, o Brasil chega ao século XXI com cerca de meio milhão de pessoas indígenas. O genocídio foi também feito através da cristianização, com o que ela significou de destruição de culturas e identidades, de desaparecimento de línguas e de formas de ver o mundo.

A chamada "vocação histórica" para a interculturalidade dos portugueses levou a que de cerca de um milhar de línguas indígenas inicialmente existentes restem apenas perto de duas centenas.

A imagem de Moacir, a fotografia referida, assim como as figuras de duas crianças indígenas junto ao padre António Vieira, na estátua que lhe erigiram no Largo Trindade Coelho, são um espectro do racismo estrutural e um invólucro de docilidade com que escondemos as nossas vergonhas coloniais. Não representam os povos originários do Brasil, não nos dizem nada sobre as múltiplas lutas que travaram contra a conquista dos portugueses, nem mesmo nos oferecem retratos das lideranças, antigas e atuais, da sua resistência.

Até quando irá a Porto Editora veicular estas imagens e silenciamentos? Até quando o Ministério da Educação e as autoridades competentes que tanto alarde fazem sobre a interculturalidade e a lusofonia se absterão de fazer as mudanças que têm de ser feitas?

Agradeço às e aos estudantes da licenciatura de Educação Básica da ESE-IPS que com as suas análises dos manuais escolares contribuíram para esta reflexão.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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