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O que é a cidade dos 15 minutos e porque assusta tanta gente?
Um assunto da semana, explicado ponto por ponto. Por Pedro Guerreiro
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É uma ideia aparentemente tão benigna que não se imagina que possa suscitar tamanha desconfiança: viver numa zona urbana em que o local de emprego, o comércio, os espaços verdes e todos os serviços essenciais estejam a menos de 15 minutos de distância, de preferência a pé. E, no entanto, o conceito da cidade dos 15 minutos é o novo pânico moral que cresce entre sectores ultraconservadores e negacionistas através das redes sociais.
O que é afinal a cidade dos 15 minutos?
A cidade dos 15 minutos não é um projecto concreto, é antes um conceito, uma ideia, como já explicou o Samuel Alemão no PÚBLICO. E essa ideia é bastante simples: que, numa cidade, cada pessoa possa ter acesso a todos os serviços essenciais, como escolas, hospitais e centros de saúde, e a comércio, equipamentos culturais e espaços verdes sem ter de se deslocar grandes distâncias. Idealmente, que todos estes serviços e equipamentos estejam, no máximo, a 15 minutos de distância a pé, de transportes públicos, ou de outras formas da chamada mobilidade suave (bicicleta, por exemplo), que seria também a distância máxima desejável entre casa e trabalho.
O conceito foi trabalhado por Carlos Moreno, um professor de urbanismo franco-colombiano da Universidade de Paris, desde os anos 1990, e popularizado em 2015, durante a COP21, a conferência das Nações Unidas sobre alterações climáticas (e vale a pena ver também esta conversa com o urbanista no PÚBLICO). Moreno propôs uma mudança de paradigma: em vez de investir em determinados modelos de mobilidade teoricamente menos poluentes, o que o urbanista sugeria era, simplesmente, reduzir ao máximo o tempo e a distância das deslocações no dia-a-dia. Isso, propõe Moreno, alcança-se nas zonas urbanas através da disponibilização de serviços e equipamentos de proximidade, dispensando por essa via o uso do carro e de outros transportes poluentes.
A ideia, que foi conquistando popularidade entre os teóricos do urbanismo e do planeamento, ganhou peso político durante as eleições autárquicas francesas de 2020, quando a presidente da Câmara de Paris, a socialista Anne Hidalgo, a propôs como modelo de desenvolvimento da capital francesa.
Onde é que este conceito já foi aplicado?
A Paris de Anne Hidalgo é o exemplo mais conhecido de aplicação desta ideia. Ali, o ponto-chave da estratégia é a transformação da escola, já presente em cada bairro, num equipamento multiusos e multigeracional para toda a comunidade, abrindo-o à cultura e à prática desportiva fora do horário lectivo. Paris tem também apoiado financeiramente o comércio local, modernizando-o e apetrechando-o para competir com as grandes superfícies comerciais.
Mas, mesmo antes de Paris, cuja aplicação do conceito é mais recente, já a cidade de Portland, no estado norte-americano do Oregon (Costa Oeste), tornou-se pioneira em 2009 ao estabelecer o objectivo de ter 90% dos seus habitantes, até ao ano de 2030, a viver em "bairros de 20 minutos", um conceito em tudo semelhante ao de Moreno, excepto no nome e na distância de referência.
Há outros exemplos. Melbourne, na Austrália, tem implementado a sua versão dos "bairros de 20 minutos" através de alterações às regras de licenciamento de construção, de modo a promover a coexistência de habitação, comércio e equipamentos colectivos, por oposição a bairros 100% residenciais ou comerciais. Otava, a capital do Canadá, também está a desenvolver a sua estratégia de cidade dos 15 minutos. Há também exemplos de políticas semelhantes na China, nomeadamente em Xangai e Guangzhou (Cantão).
E o caso de Oxford? Porque é tão polémico?
É a cidade inglesa de Oxford que tem sido apresentada por teóricos da conspiração como um exemplo das práticas e dos objectivos supostamente sinistros dos proponentes da cidade dos 15 minutos. Em 2022, Oxford aprovou um plano ambicioso para reduzir o trânsito automóvel no seu centro historicamente congestionado. Parte do plano centra-se na limitação do acesso a seis estradas durante algumas horas do dia, reservadas apenas a veículos com um dístico pago, incentivando os restantes condutores a optarem por estradas circulares exteriores, com os infractores a serem identificados por câmaras de videovigilância e multados. Outra medida é a colocação de pilaretes para limitar o acesso a alguns bairros (como vemos, por exemplo, em algumas zonas históricas de Lisboa).
Estas medidas não estão necessariamente relacionadas de forma directa com a ideia da cidade dos 15 minutos, mas é verdade que Oxford assume a inspiração no conceito de Carlos Moreno para o seu planeamento urbano, e que o conceito visa também retirar espaço e protagonismo ao automóvel.
Não é novidade que este tipo de alterações à circulação automóvel motive críticas e protestos (voltemos ao exemplo de Lisboa e da Avenida da Liberdade). Foi o que aconteceu em Oxford. Lá, no entanto, sobrepôs-se uma camada de equívocos, de desinformação deliberada e de teorias da conspiração: não é verdade que os moradores e os seus automóveis estejam confinados aos limites dos seus bairros e que as câmaras de vigilância multem quem se distanciar 15 minutos de casa, e menos verdade é que Oxford seja uma espécie de tubo de ensaio para confinar perpetuamente as populações e submetê-las a um regime ditatorial, que é uma ideia sem fundamento que tem sido divulgada por algumas figuras influentes.
Quem está a espalhar teorias da conspiração?
É uma espécie de quem-é-quem dos sectores negacionistas e radicais anglófonos, cujas ideias e propaganda acabam depois por chegar a outras paragens (incluindo Portugal), mas que também tem contado com a ajuda de algumas personalidades de partidos com credenciais democráticas.
No Canadá, mas com um alcance global, através do YouTube e do Twitter, o influente comentador Jordan B. Peterson tem apelidado o conceito de "tirânico" e "autoritário", descrevendo-o como um programa de ataque às liberdades individuais e relacionando-o com uma popular teoria da conspiração em torno do Great Reset (que não foi muito mais que um vago desafio do Fórum Económico Mundial para imaginar um futuro mais sustentável e menos desigual, sem medidas concretas implementadas, mas que tem sido apresentado pela extrema-direita e pelo negacionismo como um suposto complô ditatorial internacional, com o qual é frequentemente relacionada a pandemia da covid-19).
No Reino Unido, Nick Fletcher, deputado do Partido Conservador no Parlamento, foi outra das figuras a dar o tiro de partida para a confusão, em Fevereiro, ao apelar publicamente a um debate sobre "o conceito da internacional socialista" da cidade dos 15 minutos que, diz, abre a porta à abolição das "liberdades pessoais". O apelo encontrou eco na GB News, um canal televisivo britânico ao estilo da conservadora Fox News, onde o apresentador Mark Dolan comparou o conceito de Carlos Moreno a uma "distopia" e a Pyongyang, a capital da totalitária Coreia do Norte.
No final de Fevereiro, a fúria online extravasou para as ruas de Oxford, com uma manifestação de milhares de pessoas a protestar contra o plano "comunista" e "ditatorial" da câmara municipal e das autoridades regionais. Paralelamente, houve ameaças de morte recebidas por políticos locais e funcionários da autarquia. Também Carlos Moreno admite ter recebido ameaças nos últimos meses, tendo no entanto desvalorizado o caso.
Em Portugal, a tendência já é visível nas redes sociais: muitos dos mesmos actores que descreveram a pandemia da covid-19 como uma conspiração para limitar as liberdades pessoais, e que têm dito o mesmo sobre todo e qualquer esforço de combate às alterações climáticas, estão a adoptar o mesmo discurso em relação à cidade dos 15 minutos. "Se soa a prisão, é porque é prisão", escrevia há dias no Twitter o ex-juiz Rui Castro, um influente elemento do sector negacionista português, a propósito da adopção da ideia por Carlos Moedas em Lisboa.
Mas o conceito está a ser aplicado em Portugal?
Por cá, Carlos Moedas apontou várias vezes a ideia ao longo da sua campanha para a Câmara Municipal de Lisboa. Agora, o autarca convocou um Conselho de Cidadãos, convidando aleatoriamente 20 mil cidadãos de 24 freguesias da capital a pronunciarem-se sobre o conceito da cidade dos 15 minutos. Até ao momento, no entanto, não passa de uma ideia, sem concretização anunciada.