Naufrágio ao largo de Itália pode ter feito mais de 100 mortos
Autoridades italianas recuperaram até ao momento 62 corpos. Entrevistas aos 80 sobreviventes indicam que havia entre 180 e 200 pessoas a bordo da embarcação que naufragou na madrugada de domingo.
Num centro de recepção a migrantes que sobreviveram ao mais recente naufrágio na costa italiana, montado no cenário turístico de Isola di Capo Rizzuto e à beira de uma área marinha protegida pela União Europeia, o médico Sergio di Mato descreve as tragédias pessoais que testemunhou no domingo.
"Eles estão muito traumatizados. Algumas crianças perderam toda a família. Estamos a dar-lhes o apoio possível", refere Di Mato, da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), à agência Reuters.
Segundo as informações mais recentes, com base nos testemunhos dos próprios migrantes, a embarcação de madeira que se afundou na madrugada de domingo ao largo da província de Crotone — nos últimos 100 metros de uma travessia que tinha começado dias antes na Turquia — levava a bordo entre 180 e 200 pessoas.
Até à manhã desta segunda-feira, pelo menos 80 pessoas foram resgatadas ou chegaram à praia de Steccato di Cutro pelos seus próprios meios, e as autoridades encontraram 62 corpos, incluindo os de 11 crianças e um bebé. A confirmarem-se as estimativas sobre o total de passageiros, o número de mortes poderá ultrapassar uma centena.
O primeiro-ministro do Paquistão, Shehbaz Sharif, disse nesta segunda-feira que duas dezenas das vítimas mortais são paquistanesas. Entre os passageiros havia também cidadãos do Afeganistão e do Irão, entre outras nacionalidades.
Pelo menos um dos sobreviventes foi detido e será acusado de tráfico de seres humanos, e as autoridades italianas dizem que estão a ultimar acusações semelhantes contra outras duas pessoas.
"Sem fim à vista"
"Temos casos de crianças que ficaram órfãs, como o de um rapaz afegão de 12 anos que perdeu toda a família — nove pessoas, incluindo quatro irmãos, os pais e outros parentes próximos", contou Di Mato.
Um outro rapaz, de 16 anos, também afegão, perdeu a irmã de 28 anos. Um homem de 43 anos e o filho de 14 anos sobreviveram ao naufrágio, mas a sua mulher e os outros três filhos — de 13, nove e cinco anos — morreram no Mediterrâneo.
"É mais uma tragédia que acontece perto das nossas costas. O Mediterrâneo é uma gigantesca vala comum com dezenas de milhares de almas, e continua a crescer", diz à BBC Francesco Creazzo, porta-voz da organização não-governamental europeia SOS Méditerranée.
"Não há fim à vista", lamenta Creazzo. "Em 2013, ouvimos dizer 'nunca mais' perante os pequenos caixões de Lampedusa; em 2015, voltaram a dizer 'nunca mais' à frente do corpo sem vida de uma criança síria de dois anos. Agora, as palavras 'nunca mais' já nem sequer são ditas. Só ouvimos 'fim das partidas [em direcção à Europa], mas infelizmente as pessoas vão continuar a aventurar-se nesta travessia e vão continuar a morrer."
Também nesta segunda-feira, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, voltou a apelar aos governos dos países para tomarem mais medidas para evitar, ou minimizar, o número de mortes no Mediterrâneo.
"Ainda ontem, mais um naufrágio terrível no Mediterrâneo tirou a vida a dezenas de pessoas que procuravam um melhor futuro para elas e para os seus filhos", disse Guterres, num discurso no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, em Genebra. "Os direitos dos refugiados e dos migrantes são direitos humanos."
"Precisamos de rotas seguras, ordeiras e legais para os migrantes e os refugiados", disse ainda o secretário-geral da ONU, que foi o alto-comissário da organização para os refugiados entre 2005 e 2015. "E temos de fazer todos os possíveis para evitarmos a perda de vidas através da disponibilização de meios de salvamento e tratamento médico."
Travessias e mortes a subir
No domingo, a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, lamentou o naufrágio e classificou como "desumano" aquilo que descreveu como "a troca de vidas de homens, mulheres e crianças pelo preço de um 'bilhete' com a falsa perspectiva de uma travessia segura", reforçando a abordagem preferencial do seu Governo pelo combate às redes de traficantes.
"O Governo [italiano] está decidido a evitar as partidas e, dessa forma, a prevenir o acontecimento destas tragédias."
Numa medida muito criticada pelas organizações civis que ajudam no resgate a vítimas de naufrágios no Mediterrâneo, o Parlamento italiano aprovou uma lei, nos últimos dias, que exige o regresso imediato dos barcos a um porto após uma operação de salvamento.
Segundo as organizações, a nova lei impede que os seus barcos continuem a responder a outras emergências de forma contínua, o que poderá resultar num maior número de mortes.
Desde 2014, quase 26 mil pessoas morreram em naufrágios no Mediterrâneo, a maioria migrantes e requerentes de asilo que tentavam chegar a Itália a partir da Líbia e da Tunísia, no Norte de África. A travessia a partir da Turquia — como era o caso da embarcação que naufragou no domingo — é também uma das rotas mais usadas.
Segundo o projecto Missing Migrants (migrantes desaparecidos), o número de travessias e de mortes diminuiu entre 2018 e 2020 e voltou a aumentar nos últimos dois anos: 1449 mortes em 2020; 2062 em 2021; e 2406 em 2022. Desde o início de 2023, o projecto contabilizou 225 mortes na travessia do Mediterrâneo.