A afirmação da escola digital

A escola via Zoom não é apenas terrível, é também desigual e injusta no uso dos recursos digitais e no acesso à conetividade.

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"A pedra-angular da mudança estará sempre associada às práticas pedagógicas" Paulo Pimenta/Arquivo

Se há algo que ficará nas escolas dos ensinos básico e secundário, no período pós-pandemia, é a componente digital e a dimensão humana da relação pedagógica.

Já antes da pandemia, inúmeras escolas tinham o registo digital do plano individual dos alunos, bem como realizavam sumários digitais e usavam materiais pedagógicos digitais através de painéis de alta definição, dotados de funcionalidades mais adequadas às atuais tecnologias. De facto, a pandemia apenas acelerou essa tendência, contribuindo para a afirmação da escola digital.

Muitas escolas já participam em projetos-piloto promovidos pelo Ministério da Educação, com vista à transferência da realização das provas de aferição, das provas finais do ensino básico e dos exames finais nacionais para o formato digital, sendo de destacar, a curto prazo, a utilização nas escolas de manuais digitais. Ao nível da sala de aula, alunos e professores usam plataformas pedagógicas, sobretudo a do sistema Google Classroom, e interagem permanentemente através de novas formas de comunicação.

Ao mesmo tempo, a formação realizada tem abrangido a capacitação digital de docentes e pais/encarregados de educação, numa perspetiva de construção de uma escola digital quer em sistemas de gestão de espaços, quer na informação/comunicação, quer também na utilização de recursos pedagógicos respeitantes ao ensino, à aprendizagem e à avaliação.

Perspetiva-se, assim, uma escola digital, em que os rácios de acesso ao computador pessoal (ou a outros recursos) e à Internet, por parte dos alunos, têm vindo a melhorar, através de programas nacionais e iniciativas das autarquias.

Porém, e por mais tecnologia digital que se observe numa escola aberta ao futuro, a pedra-angular da mudança estará sempre associada às práticas pedagógicas, entendidas a partir de paradigmas, modelos e teorias, cuja construção conceptual não é recente, tendo sido amplamente discutidas em tempos diferentes, marcados por pretensas mudanças nas práticas escolares.

A ideia de que a educação e a escola têm de mudar com as tecnologias digitais é algo déjà vu, na medida em que a discussão sobre a inovação pedagógica tem sido promovida, nas últimas décadas, a partir de diferentes perspetivas, umas mais centradas na aprendizagem, outras mais orientadas para a avaliação formativa, em que o aprender é mais valorizado que o resultado académico.

Diz-se, com frequência, que as tecnologias digitais, englobando num futuro próximo as tecnologias metaverso, obrigarão a repensar a escola, na sua função de abordagem do conhecimento, assim como o ensino, a aprendizagem e a avaliação.

No entanto, as mudanças em curso não têm sido ignoradas, nem tão pouco se poderá afirmar que se está no início de um processo, como se a tecnologia fosse um corpo estranho à escola. Pelo contrário, a discussão iniciada com as máquinas de ensino, a que o psicólogo Frederic Skinner esteve associado, desencadeou um conjunto alargado de possibilidades que tornam mais fecundas as atuais análises sobre modelos de linguagem conversacional, em que imperam as tecnologias de inteligência artificial.

O que as tecnologias digitais introduzem de novo na escola e na sala de aula é uma mudança radical do currículo (e do conhecimento) e da forma como os alunos se relacionarão com a aprendizagem. Neste caso, a bússola de aprendizagem – apresentada pela OCDE, em 2018, no relatório The future of education and skills, Education, 2030 – é a metáfora mais apropriada para dizer quão diferente está a ser a aprendizagem nas escolas.

Acerca da mudança que provocará sobre todas as coisas, Matthew Ball – no livro Metaverso. O que é, como funciona, e porque vai revolucionar o mundo? – inclui a educação no capítulo Metanegócios, o que à partida diz bem dos caminhos de mercado que a educação já está a percorrer.

O valor de uso – para usar a expressão de Jean-François Lyotard, que a utilizou para as competências, na seminal obra A condição pós-moderna – aplicado às tecnologias digitais tem uma forte componente de mercado, pois o conhecimento é (e será) produzido para ser vendido, adquirindo a forma de mercadoria informacional.

O valor de uso das tecnologias digitais constata-se, ainda, na distribuição desigual dos recursos tecnológicos junto das escolas e dos alunos, bem como na melhoria de produtividade na maioria dos empregos, com o senão, como diz Ball, de o ensino ter assistido a um aumento de produtividade menor em comparação com quase todas as categorias, embora tenha o cuidado de constatar que isto não é uma crítica aos professores.

Se antes da pandemia, como anota Ball, os tecnólogos mais defensores da produtividade defendiam o pressuposto de que o ensino (secundário, profissional, universitário) seria reconfigurado e substituído pela aprendizagem remota, em que os alunos aprenderiam não na sala de aula, mas através de vídeos, aulas transmitidas em direto e testes de escolha múltipla acionados através da inteligência artificial.

Na realidade, a pandemia de covid-19 alterou profundamente essa possibilidade, já que uma das principais lições retiradas foi a de que, nas palavras de Ball, a escola via Zoom (ou através de outras plataformas) é terrível. E acrescenta o autor: “São muitos os desafios no que toca a aprender através de um ecrã, na maior parte das vezes, supõe-se que perdemos mais do que poderíamos ganhar (ou poupar) financeiramente”.

A escola via Zoom não é apenas terrível, é também desigual e injusta no uso dos recursos digitais e no acesso à conetividade, devendo-se acrescentar, na dimensão pedagógica da aprendizagem remota, a perda da presença, isto é, perda de ambiente educativo, perda de visitas de estudo, perda da relação pedagógica, perda de afetos ou, como escreve Ball, perda de tudo.

E da convicção pré-pandémica passou-se à certeza pós-pandémica, sendo difícil de imaginar que a educação remota alguma vez possa substituir por completo a educação presencial, sustenta Ball.

Tal não significa, porém, que a escola possa voltar atrás e ter somente uma educação presencial, estando, inequívoca e obrigatoriamente, aberta a modelos híbridos de aprendizagem, numa relação de aulas presenciais com aulas virtuais.

Mas a implementação de aulas virtuais será problemática, dada a diferença que existe entre um professor e um instrutor profissional ou entre quem está próximo e quem está distante ou ainda entre o humano e o pós-humano, mesmo que este – chame-se amigo digital, robot, chatbox – seja exponencialmente eficiente pela inteligência artificial de que é feito.

Sendo a educação e a escola marcadas por modalidades de aprendizagem híbrida, a comparação entre o lado humano da relação pedagógica e a interoperabilidade das experiências virtuais e imersivas será uma questão de distinção entre a compreensão da educação como faceta relacional, de múltiplas competências e saberes, e a noção de educação como percurso preditivo e personalizado a partir de dados minerados, em que a informação e o conhecimento serão, decerto, dominados por lógicas educativas diferentes.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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