O que é que um ano de guerra teve de bom?
Ninguém quer, ninguém deve passar por sofrimento físico e emocional, mas este faz-nos crescer, e é sempre uma oportunidade de nos moldarmos individual e colectivamente.
Não devia haver nada de bonito a dizer sobre o terror a que foi submetido a povo ucraniano. Os mortos que não regressam e que deixam famílias desfeitas, os milhões de refugiados cuja dor nós não conseguimos imaginar, e o trauma psicológico imensurável e eterno. Mas o sofrimento traz sempre aprendizagem.
Ninguém quer, ninguém deve passar por sofrimento físico e emocional, mas este faz-nos crescer, e é sempre uma oportunidade de nos moldarmos individual e colectivamente. Não há nada de bom, mas há aprendizagens que nos tornam mais humanos:
- Vida humana ao longe. A valorização da vida humana sem identificação, de língua, cultura, religião ou cor de pele, ainda é um fenómeno em fase embrionária, para o qual eu penso que esta guerra contribuiu bastante.
- Solidariedade em grande escala. Penso que temos que recuar a 1999 aquando das manifestações por Timor para nos lembrarmos de tantos portugueses a saírem à rua e com vontade genuína de ajudar um povo, como o que foi visto após a invasão da Ucrânia. Foi muito bonito de se ver e sentir.
- Consequências de um conflito. Compreender que não são só os tiros e as bombas que matam é o busílis da questão. O sistema de saúde ao ficar disfuncional mata muito mais. As interrupções na educação, na justiça, na protecção do ambiente, a destruição de electricidade, sistemas de água, estradas, etc., têm consequências avassaladoras que são verdade para qualquer guerra, e que têm que ser compreendidas.
- Ajuda humanitária. De uma forma mais com o coração do que com a cabeça vimos uma corrida às farmácias e uma corrida à fronteira que de pouco ou nada serviu. Mas a vontade de pôr a empatia em prática estava lá. Talvez se estiverem atentos a quem ainda lá está e vai estar enquanto for preciso, compreendam como é que funciona a ajuda humanitária que é eficaz.
- Refugiados. Portugal recebeu e com muita vontade de bem receber cerca de 60.000 refugiados ucranianos. Seria bom que conseguíssemos olhar para outras nacionalidades que também precisam de nós com a mesma compaixão.
- Importância da cidadania global. Cerca de 85% da população mundial não aplicou qualquer sanção económica à Rússia. Será caso para dizer que “nós” ocidentais nunca quisemos saber do sofrimento dos “outros”, logo talvez seja natural que algo que afecta a Europa, mas pouco ou nada afecta os “outros” faça com que: amor com amor se paga. Penso que é mais uma oportunidade para integrar a incontornável importância de sermos cidadãos do mundo, antes de sermos uma qualquer nacionalidade.
- Democracias versus Autocracias. Nesta guerra só a Rússia matou civis. Só a Rússia mata a oposição e jornalistas. Só a Rússia violou o direito internacional. Só a Rússia violou a soberania de um país. É de alguma forma compreensível que só regimes autocráticos estejam do lado da Rússia, ou vivam numa neutralidade cínica. As democracias uniram-se, e perceberam que só todas juntas acreditando em liberdade e justiça, podem fazer frente a ditadores.
- Não depender de ditadores sanguinários. É provável que estejamos perante um reorganizar da ordem mundial, talvez seja boa altura para perceber que se foi imoral e um erro fazer negócios com Putin, o mesmo também é verdade para a Arábia Saudita, China ou Irão, entre outros.
- A importância da verdade. É sabido que nas guerras a verdade é muito mal tratada, e haverá propaganda e jogos de palavras dos dois lados. Mas o edifício ideológico no qual é construída a narrativa russa, é uma mentira só. Seja na saúde, no clima, ou na política, temos que punir quem trata tão mal a verdade.
- Fome em África. Como sempre serão incontáveis, mas para além do povo ucraniano e do povo russo, são os africanos que mais sofreram com este conflito, principalmente durante o bloqueio da saída de cereais da Ucrânia. Não podemos continuar a fingir que essas vidas não contam. É o maior flagelo da humanidade e que se agudizou, sem que quase ninguém lhes desse atenção, notícias, empatia, ou acção substancial.
- PCP e extrema-direita. Eu só falo de partidos quando cruzam duas linhas que eu não estou disposto a negociar: a ciência e os direitos humanos. A posição do PCP foi, e é, uma vergonha para a humanidade, e para nós portugueses. A extrema-direita joga sempre no oportunismo e no populismo, para além de ser sabido o apoio que recebem de Putin em toda a Europa. Aqui, para já são pela Ucrânia, mas estão como abutres à espera de capitalizar no descontentamento económico caso a guerra se arraste. E aí, vão virar as costas aos ucranianos. Ficamos a saber melhor quem são e de que são feitos.
- Violência sexual. Em 2018 foi atribuído o Prémio Nobel da Paz a Nadia Murad, iraquiana, yazidi, feita objecto sexual pelo Estado Islâmico durante meses, e a Denis Mukwege, médico congolês, que dedicou toda sua vida a tratar as vítimas de violência sexual da guerra do Congo. Infelizmente a guerra da Ucrânia mostrou-nos o que nem o Nobel da Paz conseguiu. Todas as guerras, toda a miséria humana traz consigo violência sexual, e é repugnante saber que há quem feche os olhos como se fosse apenas um epifenómeno.
- Conhecemos José Milhazes. Não só pelos seus conhecimentos aprofundados que nos ajudam a compreender a russofonia, eu sinto-me um privilegiado por conhecer um pouco mais da sua personalidade e da sua história de vida. Humilde, inteligente, frontal, corajoso, mas mais do que tudo, traz-nos humanismo nas suas palavras, o que é muito raro num comentador de geopolítica.
- Uma irmã mais nova. Eu dava tudo para que ela estivesse com a sua família, os seus amigos, a falar a sua língua, e a estudar na sua universidade. Mas quis o acaso que desde há quase um ano, que entrou para a minha família, e estou a fazer tudo para que o infortúnio que Putin lhe trouxe, seja mitigado com amizade, carinho, orientação pessoal e profissional, e a possibilidade de dormir sem bombas ou sirenes. Fiquei mais rico.
A Segunda Guerra trouxe-nos as Nações Unidas e depois a Carta Universal dos Direitos Humanos. Era bom que estas saíssem reforçadas, e se possível se construísse num mundo que se pretende mais humano.
Tudo começa na tomada de consciência, por um lado, olhando de frente o terror de uma guerra, mas também, as aprendizagens que nos fazem olhar com entusiasmo para as soluções dos grandes problemas da nossa família.
Não há aqui nada de bom, mas se aprendermos passa a ser.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteira