A Rússia invadiu a Ucrânia. À tarde, fui nadar (II)

A pergunta “porquê?” foi inúmeras vezes pronunciada no dia de Natal por uma família ucraniana refugiada na Alemanha. A avó, a mais revoltada, não se conforma: “Éramos vizinhos…”

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Esta quinta-feira assinala-se um ano desde o início do conflito na Ucrânia Unsplash/Serena Repice Lentini

Há um ano, escrevemos uma crónica com o título que agora repetimos e que se trata de uma adaptação do registo de Franz Kafka: “2 de Agosto de 1914: hoje, a Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar.” Frase invocada por um dos escritores participantes do Correntes d’Escritas de 2022.

Ingenuamente, pensámos que nesta edição do festival da Póvoa de Varzim não voltaríamos ao tema. Havia a esperança em muitos de nós de que a guerra durasse pouco tempo.

Na altura, fomos nadar e chorámos por quem não conhecíamos. Mas quiseram as circunstâncias que acabássemos por nos cruzar mais tarde com uma família que se refugiou na Alemanha.

Um casal de reformados, uma filha em idade activa, dois netos (um adolescente e outro ainda criança) juntaram-se à neta adulta que já lá vivia antes. O genro, marido, pai teve de ficar na Ucrânia, como todos os homens com idade para combater.

Com eles passámos o dia de Natal de 2022, embora na sua tradição não seja essa a data em que o comemoram. Desta vez, sim: 25 de Dezembro. Aí, já chorámos por quem conhecíamos.

A pergunta “porquê?” foi inúmeras vezes pronunciada na “festa”. Sobretudo pela avó, a mais revoltada e angustiada. Para trás, deixou a sua casa, o seu jardim (“as minhas flores…”), os seus livros, o seu passado. Não se conforma, não percebe (“éramos vizinhos”…).

Pouco sai, ocupa-se com tarefas domésticas rotineiras, em que ninguém está autorizado a substituí-la. Lia muito e agora nem consegue pegar num livro. Era professora. Vamos enviar-lhe O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, em ucraniano. Russo não.

Capa de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, em ucraniano DR
Páginas de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, em ucraniano DR
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Capa de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, em ucraniano DR

O marido, mais bem-disposto, faz uns passeios, cuida do neto mais novo e brinca com ele. Dá-nos uma lição de História e Geografia da Ucrânia e de… Portugal, ao mesmo tempo que nos serve shots de vodca e nos incentiva a brindar várias vezes. “É um costume nosso”, ensina-nos. Era cientista.

O rendimento confortável que o casal obtinha no seu país, quando transposto para euros, obriga a recorrer a apoio social.

A filha encontrou trabalho num complexo industrial, depois do “milagre” de conseguirem alugar uma casa espaçosa para os cinco. A palavra “milagre” também se repete nesse dia.

Comove-se ao recordar a viagem. A fuga. Diz-se infinitamente grata pelo conforto recebido na fronteira com a Roménia. “Quando, às quatro da manhã, alguém se aproxima de nós, sabe o meu nome e nos leva para um alojamento seguro, pensei: ‘Milagre’.”

Diz ainda, emocionada: “Quando pus a cabeça na almofada, senti e reflecti: ‘Isto é um recomeço.’ Vou esquecer o que ficou para trás.” É cientista como o pai, na área de física.

A neta adulta acolheu-os como pôde enquanto procuravam casa. Gosta de os ter por perto, mas lamenta tudo isto. Teme pelo pai. Formada em Arquitectura, é agora designer.

O adolescente, um rapaz que voa nos seus patins em linha, integrou-se rapidamente e já sabe o que é namorar. O mais novo está agora mais tranquilo, deixou de atirar objectos pela janela. Fez-lhe bem ter estado com o pai, que por ali passou a buscar uma ambulância para levar para a Ucrânia. A sua tarefa é apoiar de muitas formas militares e civis. Foi-lhe atribuída uma medalha de mérito, entregue numa cerimónia a alguns metros abaixo do chão. Não se pode facilitar.

Em tudo isto pensámos enquanto dávamos umas braçadas na Piscina Municipal da Póvoa. De início, não foi fácil concentrarmo-nos nos nossos pensamentos. Uma aula de hidroginástica na pista ao lado fazia-se ao som dos Human League: “Don’t you want me, baby? Don’t you want me? Oh!” Em rigor, era uma sessão de hidrobike, com praticantes divertidos de todas as idades.

O que primeiro nos perturbou depois animou. Ou talvez seja a magia da Póvoa, a mesma que nos fez cumprimentar gente desconhecida no Passeio Alegre e só desfazer a mala um dia depois do regresso. E foi com relutância que sacudimos os grãos de areia que viajaram connosco no fundo das sapatilhas.

Para o ano, não queremos voltar ao tema.

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