Presidente da Tunísia diz que imigração da África Subsariana visa “mudar a composição demográfica do país”
Saied “repete teorias racistas como a da grande substituição”, já difundida entre a população da Tunísia. O objectivo “é criar um inimigo imaginário para distrair os tunisinos dos seus problemas”.
O discurso do Presidente tunisino contra os imigrantes da África Subsariana “marca um dia triste”, considera a organização não governamental Fórum Tunisino para os Direitos Económicos e Sociais (FTDES). “Há um acordo criminoso desde o início do século para mudar a composição demográfica da Tunísia e desde 2011 há partidos que recebem grandes somas de dinheiro para instalar na Tunísia imigrantes da África Subsariana”, afirmou Kais Saied.
As declarações do chefe de Estado que iniciou há ano e meio um processo de concentração de poderes são descritas como “muito perigosas” pela jornalista tunisina Wejdene Bouabdallah. No Twitter, o cientista político Mohamed-Dhia Hammami refere um “discurso escandaloso” que reflecte “teorias da conspiração” difundidas nos media.
Apontando vários exemplos nas redes sociais e nos media mainstream, Hammami escreve que “as declarações em que Saied decidiu usar todas as forças, incluindo militares, para atacar imigrantes negros, ocorrem no contexto de uma campanha mediática odiosa”, uma “campanha fascista antinegros”. Também no Twitter, Shreya Parikh, que investiga questões de identidade negra e árabe, escreve que Saied “está a repetir teorias racistas do tipo da teoria da grande substituição que muitos tunisinos repetem há anos”.
Éric Zemmour, o comentador de extrema-direita que no ano passado se candidatou à presidência francesa, aproveitou os comentários de Saied para sublinhar o que diz serem os méritos da teoria da “grande substituição” da população francesa pela população muçulmana (com os antigos colonos a colonizarem os antigos colonizadores), que há muito apregoa.
“Os próprios países do Magrebe [que, em princípio, fariam parte deste “ataque” demográfico a França] estão a começar a soar o alarme face ao aumento da migração. Agora é a Tunísia que quer tomar medidas urgentes para defender o seu povo”, escreveu o francês no Twitter. “De que é que estamos à espera para lutar contra a Grande Substituição?”
Insistindo na “necessidade de pôr rapidamente fim” à chegada de “hordas de migrantes clandestinos”, Saied afirmou que a presença destes imigrantes na Tunísia é uma fonte de “violência, crimes e actos inaceitáveis”. “O objectivo não declarado das vagas sucessivas de imigração ilegal é considerar a Tunísia um país puramente africano sem ligações às nações árabe e islâmica”, defendeu ainda nesta intervenção durante um encontro do Conselho de Defesa Nacional.
“O facto de o Presidente de um país signatário das convenções internacionais sobre a imigração fazer tais afirmações é extremamente grave”, disse o porta-voz da ONG FTDES, Romdhane Ben Amor, citado pelas agências internacionais. “Trata-se de uma abordagem racista como as campanhas na Europa… esta campanha presidencial procura criar um inimigo imaginário para distrair os tunisinos dos seus problemas básicos”, apontou.
Mergulhado numa profunda crise económica e social, que só tem piorado desde que Saied dissolveu o Parlamento e assumiu o poder executivo, a 25 de Julho de 2021, a Tunísia tem sido palco de manifestações que exigem o afastamento do chefe de Estado. A oposição renovou essa exigência depois das eleições legislativas de Dezembro, as primeiras desde 2021, e onde votaram apenas 9% dos eleitores.
Falta de bens básicos
Entretanto, segundo o grupo de monitorização de media Middle East Monitor, alimentos como açúcar, farinha e óleo de culinária já não se encontram nas lojas, “em parte por causa do estado desesperado das finanças da Tunísia”. Ao mesmo tempo, o Governo continua a deter e a perseguir dissidentes.
Em 2018, depois de um bem-sucedido processo de transição para a democracia, a Tunísia foi o primeiro país do Médio Oriente e do Norte de África a promulgar uma lei que criminaliza a discriminação racial, um texto votado por uma grande maioria dos deputados e que foi considerado um passo fundamental para combater os actos racistas contra os estrangeiros subsaarianos e a minoria negra, ataques que continuam a ser frequentes.
De acordo com números citados pelo FTDES, há mais de 21 mil africanos subsarianos na Tunísia (país de 12 milhões de habitantes), a maioria em situação irregular e à espera de uma oportunidade para tentar alcançar a Europa. Já os tunisinos negros são entre 10% e 15% da população – de acordo com uma sondagem feita no ano passado pela BBC, 80% dos tunisinos consideram que a discriminação racial é um problema no país.
Depois da dissolução do Parlamento, relembra a Reuters, a primeira deputada negra tunisina, Jamila Ksiksi, avisou que com a crise política era provável que os processos de discriminação demorassem mais tempo nos tribunais.