A “mascarada política”: o Carnaval na obra de Rafael Bordalo Pinheiro
A propósito da exposição no Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras, revisitamos as representações do Carnaval na obra de Rafael Bordalo Pinheiro, problematizando o seu significado histórico.
O Carnaval lisboeta
“Antecâmara do tempo penitencial da Quaresma”, o Carnaval era uma época de diversão, de subversão das regras comportamentais e de folia, “expressos através de bailes, cortejos, jogos e travessuras”. Uma época de libertação individual e, simultaneamente, de anarquia social, mas controlada pelos poderes públicos, avisados dos “usos grosseiros, loucos e até perigosos” que caracterizaram o “velho Entrudo” do século XVIII (Cascão, 1993).
Era uma das festas mais importantes do Portugal do século XIX e início do XX. Festejado noutras localidades do país, era em Lisboa que o Carnaval atingia a sua maior expressão e popularidade. Os ritos e as práticas carnavalescas reproduzem a hierarquia económico-social existente, com uma influência cada vez maior da burguesia: as “classes superiores” participavam nos bailes de máscaras, nas “batalhas de flores” e no corso da Avenida, espectáculo reservado à burguesia que se enfeitava para descer o boulevard alfacinha, em vistosos e criativos carros alegóricos carnavalescos. O evento preferido da nobreza liberal eram os bailes de máscaras, “uma das principais manifestações festivas carnavalescas”. Em número razoável por volta de 1850, surgiram em força em Lisboa nas décadas de 70 e 80, “com a criação de novos espaços de convívio”: o Circo Price, o Casino Lisbonense, o Café-Concerto, para além dos teatros D. Carlos, D. Maria II, D. Amélia, Ginásio e Trindade (Ibidem).
Em Lisboa, outros espaços preservavam a sua tradicional animação, como o Largo do Chiado e a Rua da Escola Politécnica, numa espécie de fusão entre o Carnaval popular e o Carnaval “civilizado”. Entre os mascarados, destacavam-se o pierrot, o “galego” e, sobretudo, o “chéché”, a figura mais popular do Entrudo lisboeta que satirizava a nobreza do Antigo Regime.
O Carnaval bordaliano
Assegurando um comentário gráfico regular da vida portuguesa durante mais de 30 anos, como é que Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) retratou o Carnaval? Qual a relevância das práticas carnavalescas na sua produção jornalística, caricaturista e decorativa? Que representações do Carnaval conseguimos captar a partir das suas caricaturas e desenhos humorísticos? Respondemos a estas perguntas mergulhando na obra artística bordaliana, olhando para o Carnaval, não apenas como um momento de inversão da ordem social estabelecida — característica intemporal da folia carnavalesca —, mas como um fenómeno histórico e sociológico que contempla inúmeros significados sociais, políticos, económicos e religiosos (Brito, 2005).
Rafael Bordalo Pinheiro (R.B.P.) abordou o Carnaval, tema que lhe era caro, como cena do quotidiano, objecto de reportagem gráfica, para fazer sátira política e desenhar decorações para os carros alegóricos dos clubes carnavalescos e os teatros da capital nos “bailes de terça-feira gorda”. Significativamente, abordou o Carnaval para participar na polémica causada pela imposição do Carnaval “civilizado”, com ritos e propósitos distintos do Carnaval popular. O genial caricaturista era, então, um nome celebrado, entre a pompa de toque dandy e o delírio carnavalesco.
Cena de quotidiano
O Carnaval é sempre festejado na vida lisboeta de Oitocentos e início de Novecentos, data importante que é dos divertimentos públicos da capital. R.B.P. presta-lhe especial atenção nos periódicos que fundou, dirigiu ou colaborou: quer no Rio de Janeiro, para onde foi a 19 de Agosto de 1875, quer em Lisboa, onde passou boa parte da sua vida, a folia carnavalesca é registada bastas vezes como cena do quotidiano.
O Carnaval alfacinha, menos deslumbrante que o carioca, é lembrado através das mascaradas organizadas pelos clubes, das batalhas de flores na Avenida da Liberdade ou dos espectáculos nos teatros, como o Barbeiro de Sevilha, em récita carnavalesca. Como acontecimento do quotidiano lisboeta, o Carnaval bordaliano mostra-nos as suas metamorfoses: se num primeiro momento as diversões entrudescas tiveram como protagonistas a “graça cediça do chéché” e o “espírito tasqueiro do galego carnavalesco”, elas foram sendo substituídas pelo “salsifré em família” e pelas récitas do Carnaval nos teatros de Lisboa. O “progresso”, a acção das autoridades e o “burguês conspícuo” falavam mais alto.
Reportagem gráfica
O Carnaval não falha nos periódicos humorísticos de R.B.P. Assim, em Fevereiro e Março, são várias as reportagens gráficas que publica sobre as práticas carnavalescas da época. Se as caricaturas brotam do seu génio artístico, a colaboração literária é assegurada pela nata dos cronistas da altura: primeiro, Guerra Junqueiro, Guilherme de Azevedo, Ramalho Ortigão e Alfredo Morais Pinto; depois, Fialho de Almeida, Eduardo Fernandes (Esculápio) e Eugénio de Castro e, na fase d’A Paródia, João Chagas.
As primeiras reportagens que nos chegam são dos anos brasileiros, período de formação de R.B.P., onde aperfeiçoou a técnica, criou personagens e aprofundou outras, como o Zé Povinho. Abordará o Carnaval carioca com ironia e glamour, sem lhe escapar nenhuma das questões políticas do momento. As reportagens do Carnaval lisboeta ou portuense, com grande minúcia de pormenores, além de mostrarem o enorme impacto desta festa nas duas cidades, são fonte de informação preciosa para a sua reconstituição histórica.
No Carnaval alfacinha Oitocentista destacavam-se, pela sua frequência, as récitas carnavalescas nos principais teatros da capital, e, sobretudo, as “mascaradas” organizadas pelos clubes, uma das práticas carnavalescas mais antigas, animadas com carros alegóricos ornamentados, com presença assídua do “chéché” de facalhão na mão, então a máscara mais famosa de Lisboa.
Sátira política
A sátira política a pretexto do Carnaval foi feita com inigualável mestria por R.B.P. nos principais jornais humorísticos que dirigiu: as duas séries d’O António Maria (1879-85; 1891-98), os Pontos nos ii (1885-91) e A Paródia (1900-1905). Tendo como alvo a monarquia, os governos, os partidos e os políticos, o caricaturista brinda-nos com alguns dos seus melhores desenhos carnavalescos: é o caso do “Carro alegórico para o Carnaval: o carro do Estado” (A Paródia de 18 de Fevereiro de 1903), que é uma enorme mesa do Orçamento, bem servida, visando os processos governamentais do rotativismo monárquico.
A alusão política serve-se dos folguedos entrudescos para comentar os ridículos vigentes, como as proibições do uso de bisnagas pelo Governo Civil ou quando R.B.P. sugere o aproveitamento das brincadeiras carnavalescas como “processo político para abiscoitar empregos”! As partidas mais tradicionais, como a “Dança da Bica”, são fonte de inspiração para censurar a “desordem” parlamentar e as trapalhadas eleitorais. A crítica de R.B.P. é de enorme actualidade, destacando-se os problemas crónicos do défice e do endividamento externo do país — como se não tivéssemos aprendido nada com o passado e a sátira bordaliana, aqui no seu esplendor estético.
Não menos importante: a omnipresença de Zé Povinho, o rosto de um país-povo que hesita em levantar-se, derrubando uma longa história de monarcas que sobre ele montaram a albarda. Mas que não se deixa enganar pela mascarada política, denunciando “o mesmo palavreado… e as mesmas contribuições…”!
Decorações & Alegorias
Além dos arranjos gráficos para almanaques ou dos estudos para diplomas com motivos carnavalescos, — desenhou alegorias e decorações para o Carnaval do Rio de Janeiro, Lisboa e Porto. A alegoria bordaliana evidencia-se quando na “Última Máscara” e em jeito premonitório, o caricaturista reflecte sobre o destino do Carnaval: a precariedade da vida e da alegria carnavalesca que então se vivia, e que são, afinal, fictícias e efémeras; e a progressiva descaracterização do Carnaval lisboeta, que as autoridades iam procurando “civilizar”, conduzindo-o para um final anunciado: a morte. O desenho, publicado n’A Paródia no dia 20 de Fevereiro de 1901), é um momento notável da arte bordaliana, com a morte entrando nos festejos carnavalescos para perguntar ao ébrio: “Conheces-me?”.
O trabalho de decorador, menos conhecido que o de jornalista, caricaturista ou ceramista, foi desenvolvido desde muito cedo por R.B.P. Portanto, não surpreende que fizesse decoração efémera para o Carnaval, regra geral em resposta a convites de teatros ou dos grupos carnavalescos lisboetas ou portuenses.
Em Março de 1895, tratou da ornamentação para o “baile de terça-feira gorda” do Teatro S. Carlos, com elementos vegetalistas e peças provenientes da sua Fábrica de Faianças nas Caldas da Rainha. Em 1904, o Clube Fenianos Portuenses desafiou R.B.P. para, a troco de 600 réis, apresentar um projecto para o corso carnavalesco do ano seguinte, organizado pelo clube, à semelhança dos famosos carnavais do Rio de Janeiro e de Veneza. Este foi o seu último trabalho, do qual resultou, segundo o filho Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, um “álbum em que meu pobre pai desenhou e pintou os seus projectos de carros, costumes e caraças e que ele nunca abandonou a ninguém durante a sua doença”. R.B.P. não chegou a concluí-lo: morre a 23 de Janeiro de 1905, com 58 anos e uma saúde frágil, tendo em mãos as decorações para o cortejo carnavalesco do Porto.
“Toilette” forçada
A polémica que marcou o Carnaval em Portugal no século XIX foi a tentativa de civilizar o “velho Entrudo” — tempo de distensão, de desbragamento e de loucura. Embora tenham perdido muito da sua agressividade, as práticas entrudescas não desapareceram das “classes baixas da sociedade”. Consequentemente, na transição para o novo século, a polémica voltou a estar na ordem do dia e reapareceram com vigor os apelos para civilizar o Carnaval buliçoso. R.B.P. não só dá eco dessa tensão entre Carnaval popular e Carnaval “civilizado”, como intervém na polémica com o desenho carnavalesco O Entrudo – A Toilette, outro momento notável da arte bordaliana.
Publicado no semanário ilustrado A Paródia (21 de Janeiro de 1903), o caricaturista diverte-se, e diverte-nos, com a transformação forçada do Entrudo lisboeta levada a cabo pelo Governo, com o intuito de o lavar e civilizar. A imaginação de R.B.P., com grande riqueza de detalhes, permite-nos a sugestão de que ele seria crítico dessa tentativa de aburguesamento do Entrudo. Desde logo, porque mataria a autenticidade e vivacidade do Carnaval de rua. A denúncia bordaliana contrastava com as posições assumidas pela generalidade dos jornais, bastante críticos das práticas do Carnaval popular e, em reacção a elas, vão organizar (Lisboa) ou patrocinar (Porto) o Carnaval Moderno. A isso se chamava o “apostolado” da imprensa.