Na morte de João Salgueiro, uma mini-crónica sentimental da transição
João Salgueiro representava um PSD mais moderado, balsemista, social-democrata contra Cavaco Silva, que muitos viam como alguém com “tiques salazaristas”
Se alguém em Portugal escrevesse, como fez Manuel Vásquez Montalbán em Espanha, uma “crónica sentimental da transição”, João Salgueiro seria uma personagem fundadora.
O peso histórico do golpe de Estado do 25 de Abril e da revolução que se lhe seguiu, fez com que em Portugal se dê menos atenção pública a um facto absolutamente central: na mudança de regime português, houve muito de transição espanhola, sem rei nem Adolfo Suárez.
João Salgueiro, que morreu esta sexta-feira aos 88 anos, é um desses homens que protagonizaram o desejo de uma passagem “suave” da ditadura para a democracia e que foi, em parte, cumprido – por muitas estátuas que tenham sido derrubadas e nomes de praças mudados e o fantasma do PREC [Processo Revolucionário em Curso] ainda seja agitado com tremores pela direita, como ainda agora a propósito das medidas do Governo sobre habitação.
Em 1969, João Salgueiro não está nas listas da oposição democrática, mas no Governo de Marcelo Caetano, como subsecretário de Estado do Planeamento Económico.
No ano seguinte, 1970, funda a SEDES que, naquele tempo, foi uma pedrada no charco – um genuíno think tank onde os opositores, vindos de dentro do regime e dos movimentos católicos, falhada a tentativa de mudança de Caetano, começaram a imaginar um país democrático. Marcelo Rebelo de Sousa e António Guterres foram dois dos compagnons de route de João Salgueiro. Em Agosto de 1974, quatro meses depois do 25 de Abril, é nomeado vice-governador do Banco de Portugal.
Quando condecora João Salgueiro com a Grã-Cruz da Ordem do Infante em Dezembro de 2021, o Presidente da República descreve João Salgueiro como “um pioneiro em praticamente tudo” e que “sempre que pôde deixar o protagonismo aos outros deixou”.
E é verdade que acabou por ser assim no Congresso da Figueira da Foz em Maio de 1985. Por 57 votos, João Salgueiro perdeu a presidência do PSD, deixando o protagonismo para Aníbal Cavaco Silva. Desta vez não foi por sua vontade – ainda que mais tarde venha a confessar-se aliviado.
Na Figueira da Foz, João Salgueiro representava um PSD mais moderado, balsemista, social-democrata contra Aníbal Cavaco Silva, que muitos, principalmente à esquerda, já viam como alguém com “tiques salazaristas” e tinha como uma das ideias para o partido “acabar com as tendências”. Para muitos, fora e dentro do PSD, foi um choque a derrota de João Salgueiro. Era, aos olhos da época, a direita com que o PS se podia sentar à mesa, contra uma direita mais populista e radical protagonizada por Cavaco Silva. Cavaco acabaria por revelar-se um dos políticos com maior capacidade de durar da democracia portuguesa.
Fica a dúvida para o futuro: o Bloco Central teria sobrevivido se fosse João Salgueiro a ganhar o Congresso da Figueira da Foz e não Cavaco Silva? Pode parecer um exercício inútil – o passado foi o que foi. Mas as duas grandes linhas programáticas de Cavaco Silva em 1985 eram apoiar a candidatura de Freitas do Amaral às Presidenciais (João Salgueira defendia que o PSD devia ter candidato próprio) e sair do Governo presidido por Mário Soares. João Salgueiro, o homem que representava a corrente de Pinto Balsemão, era visto como um homem com mais capacidade de fazer pontes com o PS e manter a coligação do que Cavaco Silva, de quem Soares dizia não ter “biografia”.
O Bloco Central morreu em 1985 e o seu nome nunca mais voltou a poder ser pronunciado, como se fosse um trauma de família. Mesmo a “coligação informal” que permitiu a António Guterres governar, com o PSD de Marcelo a viabilizar orçamentos na Assembleia, nunca teve direito a nome – e aquele acordo ainda era mais complexo do que a geringonça.
Mas era bom que o PSD fosse hoje liderado por um João Salgueiro, o homem que não teve hipótese em 1985. Na realidade, com todos os defeitos que tem um acordo de Bloco Central, é preferível a uma coligação com o Chega.