É preciso não ser cúmplice
Estes escândalos existentes por todo o mundo revelam uma outra coisa: que a Igreja “não precisa” de quem está fora dela para entrar num processo de destruição.
Disse o Papa Francisco e é verdade: nem que fosse um só caso, não seria admissível. Seria insuportável que o critério fosse contabilizar para medir o grau de gravidade de abusos, violações, manipulações perversas, jogos de poder sobre vítimas, e prosseguir a estratégia de encobrimento. Essa é sistémica na Igreja Católica, em nome de uma suposta defesa da sua “reputação”, à custa da descredibilização das vítimas deste tipo de abusos e de outros tipos de abuso ou de encobrimento (mesmo que estejamos a falar de maiores de idade: há milhares de casos de padres que não assumem relações com mulheres das quais resultam filhos. Há países onde padres violam freiras. Há países na Europa onde a condição para as dioceses “pagarem” o sustento dos filhos dos padres era que estes se comprometessem a nunca mais verem nem a mulher, nem os filhos — um esquema hipócrita e esquizofrénico de uma Igreja que fala da família como algo “sacrossanto”, mas que, a avaliar por essa atitude, considera mais “sacrossanta” ainda a proteção da sua hierarquia).
A hierarquia da Igreja Católica e outros seus membros que tenham praticado atos de abuso têm de prestar contas, antes de mais, às vítimas, depois, aos seus fiéis e à sociedade em geral. É porque a hierarquia incutiu em si própria a ideia de que ser hierarca da Igreja significa estar acima das leis dos estados de direito que tal constitui um convite à impunidade, um “varrer crimes para debaixo do tapete”. Estamos a falar de crimes. Encobrir é ser cúmplice. A Igreja não está acima da lei. E, no entanto, agiu como se assim fosse. Pode dizer-se que, para a Igreja, é pecado. Sim. É pecado. É pecado abusar. É pecado encobrir. É pecado ser cúmplice. E não basta a absolvição no confessionário para resolver a questão. Aliás, tristemente, o próprio confessionário constituiu também local de abusos.
O que irá a Igreja Católica em Portugal fazer com este relatório? Porque não se trata só de pedir desculpa (embora isso seja importante). Chegará um pedido de desculpa para reconstituir vidas que foram envenenadas por atos cometidos por pessoas em quem as vítimas confiavam, nas quais as vítimas e as suas famílias acreditavam?
Um dos argumentos utilizados por quem não queria expor a realidade era que estas queixas eram provenientes de quem queria mal à Igreja e, portanto, não eram credíveis. Afinal, estes escândalos existentes por todo o mundo revelam uma outra coisa: que a Igreja “não precisa” de quem está fora dela para entrar num processo de destruição. Para isso, já conta com os membros do clero que cometeram estes crimes ou que os encobriram.
O que fazer agora?
É preciso ter a humildade de pedir desculpa de uma forma efetiva: a Igreja deve comprometer-se a financiar o tratamento psiquiátrico e/ou psicológico das vítimas, bem como dos vitimizadores.
É preciso retirar os padres do exercício como padres — não mandá-los para outras paragens onde repetiam precisamente os mesmos comportamentos.
É preciso erradicar a política de encobrimento enraizada na Igreja e que constitui uma defesa em relação à sociedade.
É preciso ter a humildade de perceber que os crimes devem ser denunciados.
É preciso uma formação nos seminários na qual se fale da sexualidade como fazendo parte da realidade de todos os seres humanos, abandonando paráfrases estéreis ou ridículas, medos de falar da realidade, estilos de formação como se o clero fosse uma “casta” acima dos seres mortais. Curioso (e trágico) como a Igreja diz preocupar-se tanto com a família e mantém modelos e estilos de vida completamente alheios à realidade.
É preciso prestar contas aos fiéis. É insustentável que tantos milhões de fiéis lutem pela credibilidade da Igreja e tenham de ser confrontados com um comportamento tão execrável por parte dos seus “pastores”.
Já se sabe que estes casos também acontecem em contextos familiares, escolares, desportivos. É preciso que a Igreja conjugue esforços com todos estes contextos, para que se encontre uma forma de prevenir este tipo de situações.
É preciso não ser cúmplice.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico