O oposto da vida não é a morte, mas a indiferença entre a vida e a morte
Partilho-o, ainda que nada disto contribua minimamente para o alívio ou conforto dos que sofrem no Sudeste da Turquia e no Norte da Síria.
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Uma hora e dezassete da manhã. A temperatura no Sudeste da Turquia e no Norte da Síria rondava os 4º abaixo de zero. As pessoas estavam resguardadas em casa. A maioria dormia. Umas sozinhas, outras entrelaçadas, simplesmente aninhadas ou a amarem-se. Algumas sonhavam – "com que sonhariam as crianças?", pergunto-me. Havia quem estivesse a trabalhar debaixo de telha ou na rua, a ler, a ver televisão ou a dedilhar no telemóvel para correr as páginas de uma qualquer rede social, a comer, a beber, a fumar, a sorrir, a rir, a chorar, a pasmar, a ignorar, a vegetar, enfim, a fazer aquilo que fazemos quando não dormimos à noite.
Muitas pessoas festejavam os seus aniversários naquele dia acabado de nascer. Ou talvez o tivessem festejado na véspera. Ou fá-lo-iam no dia seguinte. Algumas cumpriam luto por familiares ou amigos que morreram recentemente. É provável que houvesse mulheres a dar à luz. Para os acordados, o amanhã era uma certeza em que nem sequer pensavam; assim como o era para os adormecidos antes de embarcarem no sono.
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Dezassete minutos depois da uma da manhã, a certeza no amanhã foi posta em causa por um abanão de 7,8 de magnitude na escala de Richter. O sismo aconteceu na intersecção de duas falhas transformantes, a Falha do Mar Morto e a Falha Este Anatólia.
"Falhas transformantes". Edifícios e pessoas transformadas em ruínas.
Mar morto = impossibilidade de vida. A concentração de sal presente nas águas deste mar é dez vezes maior do que os oceanos, não oferecendo condições para a manutenção de espécies de seres vivos, tanto animais quanto vegetais.
Anatólia: nome romano antigo, forma feminina de Anatolius, palavra de origem grega (anatolios), derivada de anatole, que significa nascer do sol.
Milhares de pessoas soterradas debaixo de edifícios. Impossibilitadas de escapar, de respirar, de voltar a ver o nascer do sol, o "futuro no passado", como Fernando Pessoa lamenta no seu Desassossego.
Anatólia. Sádica ironia.
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Dez e 24 da manhã. Um segundo sismo de magnitude 7,5 ocorre a cerca de 90 quilómetros a norte do primeiro evento. Os meios de comunicação que cobrem as operações de socorro e resgate captam imagens de prédios a tombar e pessoas a atropelarem-se pelo meio das ruas para fugirem aos desmoronamentos.
Ao ver a imagem de um homem sentado num monte de entulho que segura a mão da filha soterrada, isolo-me para chorar.
Partilho-o contra a indiferença promovida por um alinhamento noticioso que reveza tragédia com festejos, crime com proezas, corrupção com mérito.
Partilho-o porque preciso de partilhar esta angústia. Porque preciso de sentir que não estou sozinho e para que quem sente o mesmo perante esta tragédia também saiba que não está sozinho.
Ainda que nada disto contribua minimamente para o alívio ou conforto dos que sofrem no Sudeste da Turquia e no Norte da Síria, sinto-me um pouco mais humano ao fazê-lo. E é urgente fazê-lo. Contra a indiferença.
Uma grande tragédia pode unir-nos em torno das desumanidades que vemos todos os dias nas nossas ruas, nos prédios dos nossos bairros históricos que pululam de turistas durante o dia, mas onde, ao coberto da noite, dezenas de pessoas dormem amontoadas em divisões minúsculas, alimentando a bolsa de senhorios impunes perante inexistente fiscalização. "Saber toda a gente sabe", deixa escapar um responsável da proteção civil entrevistado no local por um canal de televisão.
A notícia seguinte foi a vitória do Futebol Clube do Porto contra o Vizela.
"O oposto do amor não é o ódio, é a indiferença. O oposto da beleza não é a fealdade, é a indiferença. O oposto da fé não é a heresia, é a indiferença. E o oposto da vida não é a morte, mas sim a indiferença entre a vida e a morte", escreve Elie Wiesel, escritor romeno de origem judaica, sobrevivente dos campos de concentração nazis, citado no livro Canção de embalar de Auschwitz.
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"Na cidade síria de Jinderes, por exemplo, um bebé recém-nascido foi salvo no meio dos escombros de um edifício. O bebé, que terá nascido imediatamente após o sismo, foi encontrado pelo tio, Khalil al Shami, que procurava sobreviventes na casa do irmão. O The New York Times escreve que Khalil encontrou o cordão umbilical coberto de pó. Após o cortar, o bebé começou a chorar. Escavou até encontrar a mãe do recém-nascido, sua cunhada, mas a mulher já tinha perdido a vida. A menina foi transportada em segurança para um hospital da região", pode ler-se no PÚBLICO.
Na impossibilidade de vida debaixo de milhares de quilos de pedra e betão que compõem um leito de morte, surge uma nova vida. Anatólia.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990