Nas noites de apagão dos sonhos

Sonho que choro com muita força até acordar a chorar de verdade, trago as lágrimas do sonho para a vida real. Sonho que no sonho é que sou mesmo eu, livre de amarras morais.

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Sonho que choro com muita força até acordar a chorar de verdade, trago as lágrimas do sonho para a vida real Taylor Deas-Melesh/Unsplash

Sonho com roupas apertadas e justas que não consigo vestir, que me atrasam para algum compromisso, não me recordo qual. Sonho que estou despida da cintura para baixo e que ninguém repara, mesmo sendo a única pessoa despida da cintura para baixo no meio de dezenas de pessoas que me conhecem. Sonho com roupas sujas, amarrotadas, roupas que perdi ou que me roubaram. Sonho com a minha camisola favorita em caxemira às riscas, rosa e cinzenta, que a minha mãe deitou para o lixo às escondidas. Uma camisola que foi para o lixo apesar de estar em bom estado porque a minha mãe sonhou com ela, sonhou que alguém me fazia mal estando eu com ela vestida.

Sonho com crocodilos debaixo da cama e são sempre um presságio de coisas boas na minha vida. Sonho com portas fechadas e com intrusos do outro lado da porta. Sonho com Deus atrás de mim na bancada da cozinha, sonho com a presença de Deus e durante o sonho tenho medo de me virar, de confirmar a existência de Deus. Sonho com o meu avô morto, que no sonho vive e ri-se sem dentes, sonho com traições, minhas e de outros, e sonho com mulheres despidas que quero beijar e com homens que me forçam a ter sexo.

Sonho com a minha filha em perigo, sonho que a salvo sempre. Sonho que choro com muita força até acordar a chorar de verdade, trago as lágrimas do sonho para a vida real. Sonho que no sonho é que sou mesmo eu, livre de amarras morais. Sonho com leões no corredor, com casas enormes e escuras das quais não encontro saída. Sonho com carrosséis à beira-mar de um oceano negro, e que conduzo sem travões por arribas abissais contornando cada curva como se fosse a última da minha vida. Sonho que me amam, que me odeiam, que odeio e amo na mesma medida.

Sonho que estou só e que nunca me vejo, a não ser uma vez num espelho embaciado. Sonho com pombos, eu tenho medo de pombos, e o psicanalista diz-me que é ele o pombo, que o consultório está cheio de pássaros e eu nunca tinha reparado. Sonho que o psicanalista é um tarado que se aproveita da fragilidade das doentes, estiradas no divã sob os seus olhos lascivos, e descubro nas páginas de um jornal que o psicanalista é mesmo um tarado. Sonho que estou a entrar em cena e que não sei o texto, sonho que minto e que conto a verdade. Há muitos anos que não sonho com felicidade, há muitos anos que os sonhos bons são aqueles de que não me lembro. Nas noites de apagão dos sonhos.

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