Como será o futuro mercado voluntário de carbono em Portugal?

Novo mecanismo quer captar investimentos do sector privado para complementar o investimento público em acções para “neutralizar” emissões. O que traz o futuro mercado de carbono português?

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Projectos de reflorestação serão privilegiados no futuro mercado voluntário de carbono português Paulo Pimenta (Arquivo)

O decreto-lei do Governo que cria e promove o desenvolvimento de um mercado voluntário de carbono de âmbito nacional entrou esta quarta-feira em consulta pública, que irá durar até 10 de Abril. Este diploma traz o enquadramento para a criação de um mercado de carbono a nível nacional, que permita certificar projectos sustentáveis em território português para captar investimentos provenientes de entidades que queiram compensar as suas emissões de carbono.

O diploma que regula a criação e regulamentação deste mercado voluntário de carbono tinha sido aprovado na generalidade em Conselho de Ministros a 26 de Janeiro. Numa audição na comissão de Agricultura e Pescas da Assembleia da República, o ministro do Ambiente e Acção Climática, Duarte Cordeiro, explicou que a iniciativa legislativa foi trabalhada no último semestre e foram ouvidas cerca de duas dezenas de empresas e intermediários interessados.

No Parlamento, já deram entrada três projectos de resolução (PS, IL e PAN) com recomendações sobre a regulamentação do futuro mercado voluntário de carbono português - dois deles foram levados esta quarta-feira ao plenário da Assembleia da República.

Mas o que trará de novo este mercado voluntário de carbono? É possível que um mercado de nível nacional consiga fugir às ratoeiras do greenwashing que se têm observado nos mercados de carbono internacionais?

O que são mercados voluntários de carbono?

Os mercados voluntários de carbono são plataformas, normalmente de dimensão internacional, onde entidades com grandes emissões de gases com efeito de estufa (GEE) podem comprar "créditos de carbono", ou seja, certificados que são emitidos para projectos que contribuem para a redução de gases com efeito estufa, de forma a compensar as suas próprias emissões destes gases. Nestes mercados, uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) corresponde, por norma, a um crédito de carbono.

Os mercados de carbono já estão em funcionamento há vários anos, explica Carolina Silva, da associação ambientalista Zero. O próprio Acordo de Paris prevê, no artigo 6.º, a criação de um mercado internacional voluntário de carbono para “contribuir para a mitigação de emissões de gases com efeito de estufa e apoiar o desenvolvimento sustentável”. Um dos objectivos é “incentivar e facilitar a participação de entidades públicas e privadas” na mitigação de emissões de gases com efeito de estufa.

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O mercado voluntário de carbono português dará prioridade a projectos de florestação, em particular a recuperação de áreas ardidas

Chamam-se mercados "voluntários" por oposição a regimes regulados como o comércio europeu de licenças de emissão (CELE).

Porquê criar um mercado nacional?

Em 10 de Janeiro, na audição no Parlamento, o ministro do Ambiente afirmou que este “é um tema que já está a ser discutido na União Europeia e no qual Portugal pretende adiantar-se”.

“Ao gerarem incentivos económicos para reduzir as emissões ou aumentar o sequestro de carbono”, os mercados voluntários de carbono permitem “catalisar investimentos do sector privado, complementando o esforço público em acelerar e promover acções de mitigação no território nacional”, lê-se no diploma do Governo publicado em consulta pública esta quarta-feira.

Um mercado voluntário nacional permitiria dar visibilidade e valorizar os projectos nacionais sustentáveis, incentivando “o envolvimento e a participação" tanto a nível individual como empresarial, do sector público ou privado.

Este envolvimento com a realidade nacional acontece "seja pelo lado da oferta, através da promoção de projectos de redução de emissões ou sequestro de carbono geradores de créditos de carbono, seja pelo lado da procura, através da aquisição desses créditos para efeitos de compensação de emissões residuais ou para assegurar contribuições financeiras a favor da acção climática”.

Como se calculam as emissões?

O mercado funcionará como tantos outros: as reduções de emissões de GEE ou o sequestro de carbono obtidos através de projectos no âmbito do mercado voluntário de carbono (por exemplo, a reflorestação de áreas ardidas) geram créditos de carbono.

A cada crédito de carbono gerado por projectos certificados corresponde uma tonelada de CO2, calculada com base nas orientações estabelecidas pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Ou seja, depois de calculada a pegada carbónica, por exemplo, de uma empresa, esta pode comprar um número de créditos equivalente às toneladas de CO2 emitidas no seu funcionamento.

"A compensação de emissões por parte de uma organização deve fazer parte de uma estratégia clara de descarbonização e redução das emissões de GEE da organização, com vista a atingir a neutralidade carbónica", sublinha o diploma. A aquisição de créditos de carbono por parte de uma organização deve ser "precedida da identificação e contabilização das emissões associadas à sua actividade, devendo ser claramente identificado o âmbito e as fronteiras de análise.”

Quem regulará o mercado português?

De acordo com a proposta do Governo, os créditos de carbono do mercado voluntário serão registados e transaccionados numa plataforma que vai ser desenvolvida e gerida pela APA, com critérios definidos em conjunto com uma comissão técnica de acompanhamento.

Esta comissão técnica de acompanhamento, coordenada pela APA e com a presença de representantes das entidades relevantes, vai desenvolver e avaliar as "metodologias de carbono", ou seja, como é que serão calculados (ou estimados) os efeitos do sequestro de carbono dos projectos que serão convertidos em créditos, tendo como referência as normas utilizadas a nível internacional.

Por exemplo, no que respeita às metodologias relativas a projectos de sequestro florestal de carbono, esta aprovação deverá ser feita em articulação com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Antes de serem aprovadas pela APA, contudo, estas propostas de metodologias de carbono são sujeitas a um processo de discussão pública.

Quem garante a certificação dos projectos?

Os projectos de carbono são sujeitos a um processo de validação inicial, descreve o diploma, em conformidade com os critérios estabelecidos em portaria do membro do Governo responsável pela área da acção climática. Esta validação pode ser feita "por verificador independente, devidamente qualificado", mas o decreto-lei não é claro sobre quem poderão ser estes certificadores.

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De forma periódica, o promotor do projecto sustentável deve apresentar relatórios de monitorização, com base no modelo que deverá ser disponibilizado pela APA.

Uma nota importante: os créditos de carbono não podem ser utilizados para efeitos de cumprimento de obrigações europeias ou internacionais, como o já referido CELE ou o regime de Compensação e Redução das Emissões de Carbono da Aviação Internacional, nem para o cumprimento de contribuições nacionalmente determinadas definidas no Acordo de Paris.

Quais são as áreas prioritárias?

O diploma que regula o mercado voluntário de carbono vai dar prioridade a “projectos de sequestro florestal de carbono”, em particular os que “contribuam para a conservação do capital natural e para a construção de uma paisagem mais adaptada e resiliente, incluindo a redução da vulnerabilidade aos incêndios”.

Estes projectos devem permitir também potenciar “co-benefícios”, como a promoção da biodiversidade e do capital natural.

Quais são os benefícios dos mercados de carbono?

A promoção de projectos sustentáveis que contribuem para a mitigação das emissões de GEE é o benefício mais óbvio.

A “adicionalidade” é um dos princípios fundamentais dos créditos de carbono: “qualquer projecto que seja introduzido neste esquema terá que ser novo e adicional”, algo que só poderá ser concretizado se receber aquele investimento, explica Carolina Silva, da Zero. Ou seja, não entram aqui “investimentos que têm que ser feitos de qualquer das formas”, seja pelo Estado ou pelas empresas.

Isto, contudo, é “difícil de garantir”, sublinha, já que as áreas previstas para certificação, como a floresta, e outros tipos de créditos de carbono comuns, como projectos ligados a energias renováveis, já estão a ser implementados.

Quais são os riscos dos mercados de carbono?

A nível internacional, vários alertas foram lançados sobre "a credibilidade destes créditos e compensações", que "não está sujeita a um escrutínio rigoroso", alerta Carolina Silva, da Zero.

Esta é uma questão a que o Governo parece atento. “A instituição de um mecanismo robusto e credível de certificação de créditos, relativos a projectos de mitigação de emissões de gases com efeito de estufa no território nacional, garante a segurança e confiança necessárias à participação de indivíduos, empresas e organizações, públicas ou privadas, neste mercado”, disse Duarte Cordeiro à comissão de Agricultura.

É preciso garantir “salvaguardas e mecanismos de monitorização necessários”, sublinha Carolina Silva, da Zero, de forma a evitar que as empresas recorram a estes créditos para o chamado “greenwashing”. Vários relatórios internacionais têm mostrado que há empresas e indústrias a “utilizarem isto como carta branca para continuarem a poluir, em vez de reduzirem as emissões”.

A activista vê um grande risco deste “efeito de rebound” (ricochete), em que, apesar das boas intenções, o mecanismo cria um contexto em que “empresas e indústrias não só não reduzem as suas emissões, como podem até aumentá-las, porque estão nas costas dos créditos de carbono que supostamente estão a compensar as emissões”.

O que recomendam os partidos?

Até agora, três projectos de resolução deram entrada no Parlamento com recomendações sobre a regulamentação do futuro mercado voluntário de carbono, da autoria do Partido Socialista, Iniciativa Liberal e o PAN. Todos foram submetidos antes da publicação do decreto-lei do Governo, e dois deles - do PS e do PAN - foram debatidos esta tarde na sessão plenária da Assembleia da República.

Do projecto do Partido Socialista, destaca-se a aposta na digitalização para garantir a fiabilidade do sistema, recomendando ao Governo que "promova o desenvolvimento de um mecanismo digital de análise e monitorização de sumidouros em Portugal, com recurso a tecnologia blockchain e smart contrats".

Também a Iniciativa Liberal recomenda o foco num sistema de registo e reporte destas transacções que assegure “transparência e confiança no mercado voluntário de carbono, acompanhando o uso e transferência dos créditos de carbono empregando, onde possível, tecnologias que assegurem a fiabilidade das mesmas, através do recurso a blockchain ou smart contracts”.

O PAN, por sua vez, recomenda que a implementação de um mercado de carbono voluntário em Portugal privilegie os territórios mais vulneráveis e garanta preços “que reflictam o verdadeiro custo da poluição para a sociedade”, assim como “mecanismos de transparência e de monitorização dos resultados”. O projecto de resolução do PAN recomenda ainda que o Governo avalie “mecanismos de fomento de greenbonds em Portugal, ponderando a necessidade de aprofundamento do respectivo quadro legal e fiscal”.

O Bloco de Esquerda não apresentou um projecto sobre mercado voluntário de carbono, mas submeteu um projecto de resolução em que recomenda ao Governo o fim dos apoios e lucros que caracteriza como "perversos" no âmbito do comércio de carbono. Mais especificamente, pede que o Governo deixe de atribuir "licenças de emissões gratuitas a poluidores históricos", através de mecanismos como o CELE.