Quando estalou a guerra na Ucrânia, a sommelier Tetiana Chupryna deixou Kiev com a família e refugiou-se na zona ocidental do país. Poucos dias depois chegava a Portugal, ao Douro, onde a Quinta da Côrte lhe deu guarida. Orienta visitas e provas de vinhos durienses no Cima Corgo, mas tem o coração na Ucrânia e a cabeça noutros terroirs.
Ucraniana, 40 anos, e uma vida ligada à banca — é formada em Finanças, mas trocou essa profissão "muito aborrecida" pelo mundo dos vinhos —, sonha em voltar a "casa" e, cá ou lá, mais cedo ou mais tarde, promover a sério os vinhos que se fazem naquele país. E que, antes da invasão pelos russos, começavam a dar cartas.
"Eu estava a provar muitos vinhos ucranianos e estava impressionada com esses vinhos. Queria promovê-los e contar a sua história", conta-nos Tetiana (diminutivo Tanya), num dia de chuva e sol, ora uma, ora outro, no Douro, sobre a mudança ocorrida há uns cinco anos.
Em Kiev, trabalhava numa "wine boutique", uma garrafeira onde "90 por cento dos vinhos eram ucranianos" e onde orientava provas. "Mesmo na Ucrânia, os nossos vinhos são desconhecidos, não são populares. As pessoas preferem vinhos italianos, mesmo que sejam fracos", lamenta. E os vinhos ucranianos são bons? Tetiana assegura que sim e partilha que lá, como cá, estão na moda algumas castas regionais e locais.
"Temos muitas castas internacionais, como o Chardonnay, o Riesling, o Merlot e o Cabernet Sauvignon, algumas variedades georgianas, como a Saperavi [tinta] e a Rkatsitely [branca], e uvas autóctones que neste momento estão a revelar-se muito mais interessantes", conta. Como a variedade branca Telti-Kuruk, que, dizem, dá brancos volumosos e de boa acidez. "É uma uva local, plantada só na Ucrânia, e só na região de Odessa."
É precisamente na região do Sul, fustigada pela invasão russa e parcialmente ocupada pelos russos, que está uma das zonas de produção de vinho (no país, não há demarcações), com "muito sol, bom tempo e a influência do mar Negro". Junto a Odessa, Mikolaiv e Kherson. Impensável pensar agora num futuro aí, seja para o que for. Mas Tetiana conta como em tempos de guerra "cerca de 140 produtores" continuam a fazer vinho.
"Na parte do território que não foi ocupada, as pessoas continuam a trabalhar, e produzem bom vinho." No Sul? "Sim, no Sul. E o mesmo acontece no Norte." Numa região na fronteira com a Hungria, a Eslováquia e a Roménia, onde "há uma espécie de microclima, protegido pelas montanhas dos Cárpatos, mais ameno". E, atenção, 2022, foi, dizem-lhe "produtores e amigos" na Ucrânia, "um dos melhores anos para a produção de vinho", em "quantidade e qualidade".
Na Ucrânia ocupada, já é diferente. No Chateau Trubetskoy, um dos maiores e um dos mais antigos produtores de vinho do país, em Kherson, os russos "destruíram o laboratório, a garrafeira, e levaram os vinhos todos, toda a colecção". "Esse território foi reocupado, mas as pessoas não podem fazer nada ali por causa das minas e dos ataques, que ainda acontecem."
Vinhas destruídas na era Gorbachov
No território que hoje reconhecemos como Ucrânia, produz-se vinho desde o século IV a.C., mas o "preconceito" dos ucranianos em relação ao vinho do seu país, independente desde 1991, tem explicação na História contemporânea.
"Quando fazíamos parte da União Soviética, produzíamos muito vinho, plantávamos muita vinha, mas ninguém queria saber da qualidade. A Ucrânia era um dos maiores produtores de vinho – com a Moldova e a Geórgia – e os soviéticos precisavam de volume, não procuravam qualidade. À excepção dos vinhos doces de qualidade produzidos na Crimeia, que eram para conhecedores, não era comum beber-se bom vinho."
E as vinhas dessa altura sobreviveram? "Nos anos de 1980, cerca de 80, talvez 85 por cento das nossas vinhas foram completamente destruídas. Tínhamos o Gorbachov, que decidiu que as pessoas bebiam muito e que, por isso, teríamos de arrancar tudo." Sobreviveram, por isso, "dez a 15 por cento" das antigas de então. E sobreviveram as instalações de antigas cooperativas, "na sua maioria reconstruídas e renovadas por investidores privados" a partir do ano 2000.
A maioria das vinhas actuais — 44.000 hectares, praticamente a mesma área de vinha do Douro —, muito menos do que no passado, foram plantadas nessa altura e a Ucrânia começou então "a escrever a sua nova história" nos vinhos.
A viver numa "das regiões vitivinícolas mais antigas [do mundo] e uma das mais bonitas", Tetiana não esconde o desejo de voltar a casa, para junto da família e para ajudar o seu país. Os vinhos atravessam um bom momento, apesar (ou, neste caso, por causa) da guerra ("o interesse pelos vinhos ucranianos aumentou e agora a exportação disparou, com os produtores a entrarem em novos mercados na Europa e nos EUA"), e a sommelier quer agarrar também essa "oportunidade".
Não sabe quando regressará, Kiev vive "tão normal como possível", mas o turismo de outrora foi-se e o projecto onde trabalhava fechou. Não conhecia Portugal, nem conhecia ucranianos a viver em Portugal. Recebeu propostas de outros portos seguros, em Itália, país que adora e diz conhecer bem, Áustria e Alemanha, mas já tinha nos seus planos fazer uma viagem (turística) ao nosso país. E, por isso, arriscou. Da vivência no Douro, levará experiência e "confiança".
Entre o que mais aprecia por cá, diz, está a forma "como as pessoas respeitam as tradições e os vinhos portugueses". "No meu país, se formos a um supermercado, talvez 10 por cento dos vinhos sejam ucranianos, o resto é importado. Se fizermos o mesmo aqui, 90 por cento, ou mais, são vinhos portugueses."
Enquanto não volta, procura oportunidades para promover os vinhos ucranianos, como a prova que Tetiana orientou em Novembro na Comida Independente, em Lisboa. "Estou à procura de parcerias para organizar provas, jantares vínicos, algo do género, orientado para portugueses que queiram saber mais sobre os nossos vinhos."