Ninguém é de ninguém, mesmo quando se ama alguém
Shakira escreveu, a propósito do sucesso do hit, que a conquista não era sua, mas de todas as mulheres. Discordo, até porque não é este tipo de conquista feminina com a qual me identifico.
O título, não é difícil de inferir, corresponde a um dos versos da célebre música do cantor João Pedro Pais, que talvez deva ser recuperada por estes dias, em que tanto se escreve sobre a relação de Shakira e Piqué.
O que sabe o grande público sobre o que se passou entre o casal? Muito pouco. Mas conjetura-se, adivinha-se e conclui-se que a música lançada a 12 de janeiro, BZRP Music Sessions #53, numa parceria com o produtor e DJ argentino Bizarrap, serviu de arma de arremesso, face a uma traição e posterior rutura. Assim parece.
Não chegou a público, pelo menos, até ao momento em que escrevo esta crónica, notícias de violência física, como aconteceu no passado com o cantor Chris Brown que confessou ter agredido a então namorada, a cantora Rihanna, e acabou condenado a cinco anos de liberdade condicional.
Daquilo que nos chega, parece ter havido uma traição? Uma troca de parceira? Não sabemos ao certo, mas nenhum de nós terá dúvidas em afirmar que uma traição pode provocar também violência psicológica.
Todavia, os comentários lidos por estes dias, aplaudindo a música de Shakira, parecem-me desadequados e revelam que muitos(as) continuam a assumir o(a) outro(a) como propriedade, como coisa sua, eterna, impassível à passagem do tempo, ao crescimento da pessoa, imune às outras pessoas que vamos conhecendo ao longo da vida.
Perante este rejúbilo quase coletivo, fico com a sensação de que ninguém falha. De que todos(as), percebendo a inversão de marcha e a haver vontade de seguir outro caminho, comunicam ao parceiro ou à parceira, com aviso de receção, para que, pacificamente, se aceite que a pessoa tem outro(a). Seria sim, o desejável, mas a condição de humanos, abre espaço para o fracasso.
Shakira escreveu no Instagram, a propósito do sucesso do hit, que a conquista não era sua, mas de todas as mulheres. Discordo, até porque não é este tipo de conquista feminina com a qual me identifico.
As mulheres têm lutado pela sua independência, pelo livre arbítrio de serem quem quiserem e sobretudo de estarem com quem quiserem e de repente tomarem caminhos opostos, aos que tinham jurado. E este direito de ser, vale para todos os géneros.
O que estamos a fazer ao enaltecer, em tom misericordioso, a atitude da coitadinha da Shakira que foi traída, é insistir no estereótipo de que a traição é coisa deles e assim continuar a abrir espaço para que o comportamento, ao ser apontado a uma mulher, seja visto como pecado mortal.
Uma música que tem sido percecionada como um grito de revolta, afinal não é mais do que uma armadilha. Se legitimamos e consideramos motivo de orgulho e até de empoderamento feminino esta canção da Shakira, continuamos a abrir caminho para que se legitimem outros comportamentos, porventura mais agressivos, como resposta a uma traição. Recordo a notícia de 2017, em que um acórdão da Relação do Porto desvalorizava a agressão a uma mulher que traiu o marido e acabou agredida pelo mesmo com uma moca com pregos.
O conceito de traição não é um conceito estático, podendo assumir definições diferentes, mediante as diversas sensibilidades. Para muitos, um olhar, uma conversa, o sentir desejo por outro, o sonhar, já é traição. Outros admitem que o limiar da traição se situa no contacto físico. Do meu ponto de vista, assumindo e reconhecendo a fragilidade do ser humano, não elogio a prática da traição, mas encaro-a como um comportamento inerente à nossa condição de seres falíveis.
Eu, enquanto mulher, não preciso que me deem mais músicas destas. Move on! Em pleno século XXI, a letra da música só é compreensível se o intuito de gerar alvoroço tiver sido propositado, numa lógica de mercado. Las mujeres ya no lloran, las mujeres facturan…
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990