Brasil e Argentina estudam lançar uma moeda comum a pensar no Mercosul
Cimeira em Buenos Aires marca arranque dos primeiros estudos para a criação da “Sur”. Fernando Haddad e o número dois nas Finanças do Brasil já defendiam projecto antes da entrada no Governo.
O Brasil e a Argentina preparam-se para começar a estudar a criação de uma moeda comum, que poderá incluir outros países vizinhos e formar uma divisa sul-americana, noticia o jornal Financial Times. A ideia passa por lançar, numa primeira fase, uma moeda que coexista com o real brasileiro e o peso argentino, capaz de fortalecer a soberania da América do Sul e, passo a passo, reforçar os laços comerciais no Mercosul.
Assim que Lula da Silva assumiu a Presidência do Brasil, o novo ministro das Finanças e Economia (Fazenda), Fernando Haddad, reuniu-se com o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, para discutir o projecto, que esta semana deverá dar um primeiro passo formal.
A cimeira da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) que decorre em Buenos Aires na próxima terça-feira, 24 de Janeiro, servirá de palco para o Brasil e a Argentina anunciarem o arranque dos primeiros estudos e convidarem outros países a juntarem-se, escreve o jornal britânico.
Ao Financial Times, o ministro da Economia argentino, Sergio Massa, disse que será tomada a decisão de “começar a estudar” o projecto, “o que inclui todo [o tipo de enquadramento], desde questões fiscais à dimensão da economia e ao papel dos bancos centrais”.
À CNN Brasil, o embaixador da Argentina no Brasil disse no início do ano, quando se encontrou com Fernando Haddad, que a ideia em cima da mesa não é criar uma moeda única para o Brasil e a Argentina, mas sim uma divisa comum que poderá coexistir em paralelo com as nacionais.
“Não significa que cada país não tenha a sua moeda, significa uma unidade para integração e aumento do intercâmbio comercial em todo este bloco regional”, afirmou o embaixador, referindo-se à possibilidade de a moeda existir para os países do Mercosul, bloco cujo papel Lula quer relançar e que, neste momento, tem como membros activos o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai.
A Venezuela também pertence ao Mercosul, embora esteja com os direitos e obrigações suspensos enquanto Estado-membro. Além dos efectivos, há sete Estados associados: o Chile, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru, o Suriname e a Bolívia (esta última em fase de adesão).
Embora o projecto ainda esteja numa fase embrionária, o Brasil já tem uma sugestão de nome para a divisa, a “Sur”, que significa “sul” em espanhol. Para não criar “falsas expectativas, o ministro da Economia argentino admite ao Financial Times que ainda há um longo caminho a percorrer.
Uma moeda “digital”?
O objectivo do projecto é abranger mais economias, a pensar no Mercosul, daí que o Brasil e a Argentina queiram chamar outros países vizinhos.
Meses antes de se tornar ministro, Fernando Haddad e o economista brasileiro Gabriel Galípolo, ex-presidente do Banco Fator e agora o seu número dois no Ministério das Finanças, assinaram um artigo na Folha de S. Paulo a explicar como é que a moeda poderia ser operacionalizada. Nessa altura — em Abril — já falavam na possibilidade de haver uma “moeda digital” e já se referiam ao projecto como a “Sur”.
Nesse texto, defendiam a importância de os países e blocos regionais fortalecerem a soberania monetária, o que seria possível se partilhassem “uma moeda com maior liquidez” para poderem relacionar-se com “economias que, juntas, representam maior peso no mercado global”. O contexto geopolítico era já marcado pela invasão da Ucrânia decidida por Vladimir Putin e pelas sanções económicas à Rússia (dos Estados Unidos à União Europeia, passando Reino Unido, Canadá ou Suíça), movimento que os dois autores referiam como argumento para mostrar que foi graças ao “poder das suas moedas” que os Estados Unidos e a Europa impuseram “severas sanções contra a Rússia”.
“A utilização do poder da moeda em âmbito internacional renova o debate sobre a sua relação com a soberania e a capacidade de autodeterminação dos povos, em especial para países com moedas consideradas não conversíveis. Por não serem aceites como meio de pagamento e reserva de valor no mercado internacional, os seus gestores estão mais sujeitos às limitações impostas pela volatilidade do mercado financeiro internacional”, diziam.
Em relação à operacionalização da “Sur”, Haddad e Galípolo referiam que a moeda digital podia inspirar-se na forma como o Brasil usou em 1994 a Unidade Real de Valor (URV) como referencial de conversão durante alguns meses até à introdução do real.
“A moeda seria emitida por um banco central sul-americano, com uma capitalização inicial feita pelos países-membros, proporcional às suas respectivas participações no comércio regional. A capitalização seria feita com reservas internacionais dos países e/ou com uma taxa sobre as exportações dos países para fora da região. A nova moeda poderia ser utilizada tanto para fluxos comerciais quanto financeiros entre países da região. Os países-membros seriam creditados com uma dotação inicial de Sur, em regras claras convencionadas, e teriam liberdade para adoptá-la domesticamente ou manter suas moedas. As taxas de câmbio entre as moedas nacionais e a Sur seriam flutuantes. Direitos financeiros, como reservas internacionais, também forneceriam contrapartida para emissão equivalente de Sur”, escreveram.
Será preciso ter em consideração as assimetrias macroeconómicas entre os países da região, diziam. “É também fundamental [haver] um mecanismo de ajustes simétricos entre países superavitários e deficitários. Os recursos vindos desse mecanismo serão utilizados para capitalizar um fundo da Câmara sul-americana de Compensação, vocacionado a financiar a redução de assimetrias entre as economias e o fomento das sinergias entre elas”.
Ao mesmo tempo, “os países-membros poderão comprar Sur para compor suas reservas internacionais, sem que os valores adquiridos sejam taxados. Devem ser criados mecanismos para taxar e desincentivar ataques especulativos”, salientavam Haddad e Galípolo, agora na liderança da pasta das Finanças no Brasil.
Para a Argentina, escreve o Financial Times, a atractividade é mais evidente, pelo facto de a inflação anual se aproximar dos 100%, o que implica que o banco central “imprime dinheiro para financiar as despesas”. “Durante os primeiros três anos de mandato do Presidente Alberto Fernández, a quantidade de dinheiro em circulação quadruplicou, de acordo com dados do banco central, e a nota com a maior denominação em peso vale menos de três dólares”, refere o jornal britânico.