Inteligência artificial: uma rutura silenciosa
Depois dos matemáticos, dos economistas e dos programadores, chegou a vez dos criativos terem à sua disposição a inteligência artificial.
O título deste texto foi retirado de um projeto de investigação desenvolvido na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, que estudou a proximidade entre os movimentos de renovação no cinema e na arquitetura nas décadas de 60 e 70, marcados pela Pop Art, pelo Pós-modernismo, pela Nouvelle Vague e pelo Neo-realismo.
A investigação foi feita sobre obras que estabeleceram uma rutura silenciosa que, à escala nacional, antecipavam as convulsões da sociedade que mais tarde levaram à revolução de Abril. Hoje, à escala global, no design, na arquitetura e em qualquer outro campo disciplinar ligado à arte e à criatividade, estamos a assistir a uma outra rutura, igualmente silenciosa, e que provavelmente também culminará numa revolução deste sector.
Falo-vos da inteligência artificial (AI). O conceito não é novo – tem mais de sessenta anos – e a sua utilização no nosso quotidiano também não. Matemáticos usam-na para resolver equações complexas, economistas para prever o desenvolvimento dos mercados, programadores para antecipar comportamentos humanos que fazem com que os nossos telemóveis nos conheçam melhor que nós mesmos.
Todos os dias a utilizamos e, de forma mais ou menos consciente, todos os dias lhe fornecemos informação que a alimenta e a torna mais poderosa. Esbatem-se os limites da privacidade e até da segurança, direitos dos quais facilmente abdicamos em troca de algum conforto adicional. Veja-se o caso do aspirador iRobot, recentemente adquirido pela Amazon, que enquanto limpa autonomamente o nosso chão recolhe informação detalhada e altamente privada, como o tipo de dispositivos multimédia que utilizamos, a quantidade de móveis que temos no quarto ou na sala e até a dimensão da nossa casa.
A AI como ferramenta utilizada para monitorizar as nossas vidas, recolher e organizar informação, reproduzir tarefas repetitivas ou resolver operações de elevada complexidade é tudo menos uma novidade. Mas chegamos agora a um novo patamar. A AI já não serve apenas para desenvolver tarefas aborrecidas ou tecnicamente complexas. Serve também como ferramenta criativa, capaz de gerar desenhos, modelos tridimensionais, textos ou músicas. Não raras vezes, os resultados são verdadeiramente originais, inimagináveis, produto de uma capacidade de inventividade que a mente humana poderia nunca vir a alcançar. A criatividade deixa assim de ser um exclusivo dos humanos e pode passar a ser explorada por computadores.
Em 2016 foi gerada uma pintura tridimensional impressa com base em informação recolhida no portfolio do pintor holandês Rembrandt. Dois anos mais tarde, foi pela primeira vez leiloada uma obra de arte integralmente produzida através da IA. A peça com o título Edmond de Belamy, um retrato de 70cm X 70cm, rendeu uns impressionantes 432 500 dólares num leilão da Christie’s em Nova Iorque. Tais episódios ofereciam um futuro simultaneamente promissor e distante. Por um lado, os resultados eram fascinantes. Por outro, os processos de criação eram dominados por meios de programação altamente sofisticados, tecnicamente inacessíveis a um artista, designer ou arquiteto comum.
Passou meia dúzia de anos e hoje o acesso a ferramentas de IA que permitem criar obras originais está altamente democratizado. Através do Botnik podemos compilar e misturar textos existentes e gerar automaticamente novos capítulos. Através do Midjourney podemos criar imagens únicas, gratuitamente e em poucos segundos, com base em simples descrições do que pretendemos.
A Finch oferece-nos um programa capaz de gerar plantas de edifícios, permitindo testar em tempo real dezenas de hipóteses para um projeto, acelerando um trabalho que tomaria várias semanas a um arquiteto experiente. E poderia citar muitos outros exemplos de softwares e websites que produzem de forma automática trabalho criativo através da IA.
Não creio que com isto, escritores, pintores ou arquitetos venham a perder os seus empregos. Pelo contrário, esta será uma nova ferramenta que lhes permitirá automatizar pela primeira vez algumas das suas tarefas criativas, deixando-lhes mais tempo livre ou, alternativamente, mais tempo para criar outras coisas. Por outras palavras, a IA poderá ser o motor de uma nova era de produtividade criativa.
Tudo isto transformará em definitivo a noção de criatividade tal como hoje a conhecemos, e levantará novas questões relacionadas com direitos autorais, com a reprodução ou com a valorização das obras de arte. Não sabemos ao certo até onde irá e qual será o caminho que a IA fará nos próximos tempos. Contudo, ironicamente, somos nós, humanos, que a levaremos pela mão, com os dados que diariamente providenciamos. Neste campo, a relação entre “o homem” e “a máquina” pode e deve ser de cooperação e complementaridade, para que um não substitua o outro. Depois dos matemáticos, dos economistas e dos programadores, chegou a vez dos criativos terem à sua disposição a inteligência artificial. Utilizemos a inteligência humana para fazer desta uma boa revolução.