A saúde das mulheres está em crise. Em muitos locais, as listas de espera de ginecologia estão a aumentar ou atingiram mesmo números recorde.
Mesmo quando uma mulher consulta um especialista, há relatos aterradores sobre o que o Conselho da Europa define como "violência obstétrica". Isto inclui não só a realização de procedimentos de diagnóstico sem um controlo adequado da dor, mas também a falta de compaixão para com a paciente. Tais relatos são chocantes, mas talvez não surpreendam quando se considera quão pouco alguns aspectos da medicina das mulheres mudaram em centenas de anos — e a história desagradável que carregam.
Assim que uma mulher chega à consulta com o especialista, um espéculo é a forma habitual de ver o que se passa no interior do corpo. Estes dispositivos remontam à Roma Antiga. São compostos por duas ou três "folhas" que precisam de ser abertas no interior do corpo para proporcionar melhor visão.
O espéculo é tradicionalmente metálico, o que significa que está frio, a menos que seja previamente aquecido. Está a ser trabalhado um novo modelo por um grupo de designers e engenheiras. O Yona tem uma superfície de silicone e uma aparência muito menos ameaçadora. É um desenvolvimento importante na saúde das mulheres, dado que o espéculo vaginal permaneceu em grande parte inalterado desde o século XIX.
Mas mais do que os ruídos metálicos e o frio, no centro da história bastante horrível do espéculo está o quão invasivo é. De facto, na Grã-Bretanha do século XIX, quando três leis tentaram deter as doenças sexualmente transmissíveis (porque se pensava que estas ameaçavam a saúde do exército e da marinha do país), qualquer mulher suspeita de ser trabalhadora sexual podia ser enviada para um exame forçado com um espéculo.
A activista Josephine Butler chamou a tais exames "violação forçada". Mesmo uma suspeita de doença significava que a mulher ficaria no que era conhecido como um "hospital fechado à chave" — um estabelecimento especializado no tratamento de doenças sexualmente transmissíveis — até que os sintomas desaparecessem.
O mito da virgindade
No passado, quando a virgindade ainda estava firmemente ligada à ideia de uma membrana chamada hímen, o espéculo era temido porque se pensava que iria romper o hímen e pôr fim à virgindade. Isto prejudicaria a "pureza" de uma mulher e torná-la-ia impossível de casar.
Embora, pelo menos nas sociedades ocidentais, estas ideias já não sejam comuns, suposições sobre qual o tamanho do espéculo (sim, vêm em tamanhos diferentes) a utilizar ainda se relacionam com a actividade sexual.
Sarah Walser, médica no Hospital Johns Hopkins, nos EUA, ficou chocada ao descobrir, quando fazia a sua formação clínica, que os nomes "espéculo virginal" e "espéculo extra-virgem" eram utilizados para os tamanhos mais pequenos. Como Walser argumenta, estes rótulos assumem que "o único sexo que importa é a penetração heteronormativa pénis-vagina".
O medo de romper o hímen ainda afasta as pessoas com vaginas de importantes exames ginecológicos de rotina, tais como o Papanicolau, para detectar células anormais no colo do útero. Mas os hímenes, mesmo onde existem (algumas mulheres nascem com pouco tecido ou sem o tecido), variam enormemente na sua flexibilidade.
De facto, uma rapariga de 19 anos que estava hospitalizada na década de 1880 por não ter o período foi considerada como tendo um hímen tão flexível que "um espéculo Fergusson de tamanho médio (2,54 centímetros) foi introduzido repetidamente, para fins de exploração, sem afectar minimamente a sua integridade".
Esta é uma história perturbadora porque o uso da palavra "repetidamente" sugere que esta jovem mulher pode ter sido examinada vezes sem conta para demonstrar o ponto. No entanto, mesmo nesta altura, sabia-se que o espéculo pode causar dor ao beliscar as paredes da vagina (e ainda hoje é este o caso).
Invasivo e doloroso
No século V, no livro A Cidade de Deus, o influente teólogo Santo Agostinho argumentava que a pureza era sobre a alma, não sobre o corpo. Na altura, as parteiras parecem ter sido usadas para verificar se o hímen estava lá. Agostinho comentou: "Uma parteira, suponhamos, destruiu (seja por malícia acidentalmente ou por imperícia) a virgindade de alguma rapariga enquanto se esforçava por verificá-la. Suponho que ninguém é tão tolo a ponto de acreditar que, por esta destruição da integridade de um órgão, a virgem tenha perdido alguma coisa, mesmo da sua santidade corporal."
Agostinho chama aqui a nossa atenção para o paradoxo do hímen: procurá-lo pode ser precisamente o que o destrói.
Mesmo escritores históricos, como Thomas Bartholin e o seu pai Caspar Bartholin, que insistiam que o hímen era real e era prova de virgindade, aperceberam-se de como era fácil rompê-lo. No seu texto de 1668, Bartholinus Anatomy, admitiram que uma virgem poderia quebrá-lo com os dedos ou com outra coisa e sugeriram que havia formas de ter relações sexuais vaginais que o manteriam intacto.
Os corpos das mulheres sempre tiveram muito mais significado do que a sua anatomia básica. São usados para falar de moralidade e pureza. E, ainda que para a maioria das mulheres que hoje em dia consultam um especialista o hímen já não seja relevante, o espéculo invasivo com o seu potencial de dor continua a ser tanto uma ameaça à nossa saúde como um meio de diagnosticar a nossa doença.
Exclusivo P3/The Conversation
Helen King é professora de estudos clássicos na Universidade Aberta, no Reino Unido