Wednesday Addams é autista?

Tim Burton já nos habituou a mundos delirantes e sombrios, nos quais personagens diferentes e incompreendidas resistem aos padrões normativos.

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A personagem Wednesday Addams é interpretada pela actriz Jenna Ortega Netflix/DR

Quem digitar as palavras “Wednesday” e “autista” num motor de busca vai, muito provavelmente, encontrar milhares de resultados que especulam se a protagonista da série homónima da Netflix está no espectro do autismo. Do desconforto social à dificuldade em descodificar emoções, são vários os traços de neurodiversidade presentes na filha mais velha da família Addams (interpretada pela actriz Jenna Ortega). Mas o diagnóstico de uma personagem importa?

Vamos por partes. Comecemos pelo realizador Tim Burton, que assina metade dos capítulos de Wednesday. Este cineasta já nos habituou a mundos delirantes e sombrios, nos quais personagens diferentes e incompreendidas resistem aos padrões normativos (vide Eduardo Mãos de Tesoura). Quando se debruçou sobre o guião desta série da Netflix, sentiu uma empatia imediata.

“Identifiquei-me [com o guião], sobre como me sentia na escola, sobre como nos sentimos em relação aos nossos pais ou a nós próprios como ser humano”, afirmou Tim Burton em declarações à Empire. A série Wednesday é, entre outras coisas, sobre adolescentes que não se encaixam no sistema educativo tradicional. Porque apresentam poderes sobrenaturais, diferenças físicas e comportamentos atípicos. E, por isso, são encaminhados para o colégio Nevermore, uma instituição que acolhe alunos inadaptados.

Tim Burton recorda-se da carga emocional associada à ida ao baile de finalistas, em 1976, o mesmo ano em que o filme Carrie era exibido nos cinemas. A protagonista deste filme antigo era uma miúda ruiva, marginalizada, sem amigos. “Senti-me como uma Carrie masculina naquele baile. Tive aquela sensação de ter que estar lá, mas não fazer parte daquilo tudo. Esses sentimentos não vão nunca embora, por mais que desejemos”, confessa o realizador.

Tim Burton foi, ele próprio, um pária na comunidade escolar. A ex-mulher do realizador, a actriz Helena Bonham Carter, acredita que o ex-marido é autista. Isto explicaria, segundo um artigo no jornal britânico Guardian, o mundo hermético que a fabulosa imaginação de Burton engendrou. E, não espanta, portanto, que o artista tenha trazido para o universo da família Addams – criado originalmente pelo cartoonista Charles Addams, nos anos 1930 – o desconforto da adolescência combinado com um verniz gótico e neurodiverso.

O diagnóstico de autismo assenta em critérios claros, definidos no DSM-5. Trata-se de um manual elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria e que serve de referência a todos os profissionais de saúde que actuam nessa área. O documento, cuja quinta edição foi publicada há uma década, refere como frequentes no autismo dificuldades na área da comunicação e da interacção social, assim como comportamentos restritos e repetitivos.

Há ainda aspectos comuns no autismo relacionados com o processamento sensorial – ser muito sensível aos ruídos ou ter selectividade alimentar, por exemplo. Podemos tentar encontrar estas características em personagens ficcionais, mas essa análise será sempre isso mesmo: uma observação, nunca um diagnóstico.

Se olharmos com atenção à personagem interpretada por Jenna Ortega conseguimos, com alguma facilidade, identificar sinais de autismo. Wednesday (Wandinha, na legendagem em português do Brasil) não gosta de ser abraçada, diz o que pensa sem filtros sociais, aprecia rotinas fixas, dispensa eventos sociais e tem dificuldade em interpretar emoções alheias. Wednesday também apresenta um olfacto extremamente apurado, sendo capaz de localizar a personagem Mãozinha só pelo cheiro.

Estas características fazem de Wednesday uma rapariga autista? Não sabemos. Esta informação não é mencionada em nenhum momento na primeira temporada. Ainda assim, muitos autistas nas redes sociais garantem o diagnóstico da personagem interpretada por Jenna Ortega. Sobejam vídeos no TikTok celebrando a identidade neurodiversa da protagonista. Transpira destes vídeos um enorme contentamento por ver uma miúda que, à partida, seria considerada bizarra, ou no mínimo anti-social, a liderar a listas das séries mais vistas da Netflix.

E esta discussão importa? Sim, e muito. Mesmo que Wednesday não tenha sido pensada no guião como uma adolescente autista, já é positivo o simples facto de comunidades ostracizadas se verem representadas em narrativas ficcionais. Há cada vez mais exemplos de neurodiversidade em produtos culturais, contribuindo para um maior conhecimento sobre a condição e uma aceitação maior da diferença. É no mínimo interessante ver uma legião de jovens apaixonada por alguém como Wednesday. O próximo passo, desejável e necessário, é ver essa mesma geração a incluir, na vida real, pessoas com as mesmas dificuldades sociais que as da jovem Addams.

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