Comecemos por explicar o título que adapta uma frase de Jorge Ferreira, o homem que, em 1979, comprou, idealizou e começou a construir para a Casa Ferreirinha aquela que será, a partir de 1987, a emblemática propriedade do universo Sogrape e onde, entre outros vinhos, se produz o Barca Velha: a Quinta da Leda. O administrador da Casa Ferreira, que morreu novo numa curva no Marão, em 1992, costumava dizer que “o Douro não nos pertence, nós é que pertencemos ao Douro”. Só alguém apaixonado por um território pode criar um slogan destes. Curiosamente, e como veremos adiante, esta tese assenta bem na cultura organizacional da Sogrape.
O Douro tem figuras de filme, mas, por esta ou por aquela razão, são património das famílias que gerem o negócio do vinho e de uns poucos apaixonados e estudiosos. Trineto de Antónia Adelaide Ferreira, Jorge Ferreira foi responsável pela gestão das quintas do universo da Casa Ferreirinha. Imaginando que, a dada altura, algumas propriedades deixassem de produzir uvas para a Ferreira, em particular a Quinta do Vale Meão — na altura o solar do Barca Velha — começou a pensar em terrenos alternativos no Douro Superior, coisa que parecia uma loucura naqueles tempos.
Certo dia, em Gaia, recebe o telefonema do senhor Trabulo, de Almendra, à procura de um tal José António Rosas, porque lhe queria propor uma quinta do Douro Superior onde crescia centeio. Ora, José António Rosas era de uma empresa concorrente, a Ramos Pinto. E, com a elegância empresarial que só se encontra nas casas de Gaia, Jorge Ferreira, de acordo com o filho Francisco Ferreira — administrador da Quinta do Vallado — “identificou-se e disse ao senhor Trabulo que iria passar a mensagem ao José António Rosas, mas realçando que, se esse não estivesse interessado na propriedade, voltaria ao contacto". "O meu pai falou com o José António Rosas, contou a história e este disse-lhe que não estava interessado porque tinha acabado de comprar a Quinta da Ervamoira, também no Douro Superior. E foi assim que se comprou a Quinta da Leda, quase por mero acaso, na altura com uns vinte e pouco hectares e sem uma única cepa”.
Quem visite as duas quintas — a Leda e a Ervamoira — pensará que está perante propriedades que arrastam atrás de si uma longa história. Na verdade, não é assim. O que elas arrastam, isso sim, é gente que tinha e tem uma capacidade visionária que arrepia. Se a Ervamoira é uma das mais bonitas vinhas do mundo, a Leda é um ondulado suave de vinhedos que parece uma provocação. Se olharmos para a linha de vinhas ao alto e junto ao rio ficaremos com a ideia de que o Douro foi criado por alguém que sacudiu a quinta como quem sacode uma manta e que as ondas resultantes desse movimento ficaram congeladas, como se fosse um mar de pequena vaga com vinhas. Ondas essas — declives que apanham sol em diferentes horas do dia — determinantes para a personalidade dos vinhos.
E questão é esta: como foi possível idealizar tais projectos? O que estaria na cabeça de Jorge Ferreira quando — contra todos os que diziam ter enlouquecido — arriscou em terrenos inclementes para a vinha e onde os cães queimam facilmente as patas num qualquer dia de Agosto?
Francisco, o filho, só tem uma justificação: “A paixão. Além da racionalidade, era a paixão. O meu pai não era apenas um homem que amava o Douro. Onde quer que estivesse, só pensava no Douro, de tal forma que, na Primavera/Verão, quando vinha do Douro para o Porto, trazia sempre ramos de esteva no carro para sentir o cheiro do Douro perto si. Eu e os meus irmãos, quando éramos miúdos, na viagem do Douro ao Porto, enjoávamos por causa das curvas e do cheiro das estevas. Odiávamos aquilo. Era uma mistura explosiva. Só mais tarde é que eu fiz as pazes com as estevas. Hoje, no Verão, adoro andar de vespa entre a Galafura e Covelinhas, só para sentir os aromas do Douro”.
Como o mundo dá muitas voltas, em 2012, um dia depois do inesquecível lançamento do Barca Velha 2004, em Marialva (um dia contaremos a história), subimos o Douro de barco a caminho da Quinta da Leda, com Fernando Guedes pai de chapéu de palha, copo de Mateus Rosé nas mãos (obviamente) e a fazer comentários sobre as quintas da margem esquerda e da margem direita, sempre com uma piada aqui e outra ali. A dada altura, diante de uma vinha qualquer que estava a ser replantada, diz isto: “está a ver, este negócio nunca nos pertence verdadeiramente porque estamos sempre a trabalhar para as gerações seguintes. Foi assim com o meu pai, é assim comigo e com os meus filhos e vai ser sempre assim”. Fez uma pausa e continuou: “convém é que aquilo que fazemos hoje fique bem feito”.
Se tivermos em conta um vinho chamado Legado — feito na adega da Quinta da Leda, mas com uvas da Quinta do Caêdo — e todo o investimento que a actual geração liderada por Fernando Cunha Guedes está a realizar em várias quintas do grupo, é fácil perceber que a cultura da Sogrape é só um prolongamento da frase de Jorge Ferreira, e por nós adaptada em título. No mundo do vinho o sentimento de posse é peculiar porque trabalha-se a terra e a natureza para quem vem a seguir, sem que se saiba muito bem que mundo novo será esse. A beleza do vinho também está nisto. Ou, como escreve Fernando Cunha Guedes no manifesto sobre fine wines e apresentado no jantar de celebração dos 25 anos do Quinta da Leda, está no acto de “sonhar, criar e partilhar”.
E foram 20 vinhos numa hora e meia
O evento de celebração dos 25 anos do nascimento do primeiro Quinta da Leda decorreu, em Lisboa, em Dezembro, com uma prova vertical de 20 edições, o que significa que desde 1997 foram poucos os anos em que não se lançou a referência da Casa Ferreirinha. Provar 20 vinhos numa hora e meia é dose, mas é um belo desafio. E, claro está, aborda-se a prova sempre com a eterna questão: será possível identificar um estilo preciso de Quinta da Leda?
Não nos parece, até porque, apesar de as primeiras plantações de vinhas terem começado logo em 1979, ao longo destes 43 anos a propriedade foi uma espécie de laboratório para tudo e mais alguma coisa: selecção de castas, compreensão dos solos e das exposições (uma ciência), construção da adega em 2001, chegada da rega só em 2015, testagem e alteração dos perfis das madeiras de estágio.
Tudo isso são factores que foram interferindo no perfil do vinho em causa, sendo certo que, como sublinhou na prova o enólogo Luís Sottomayor, um Quinta da Leda “procura ser sempre um vinho com estrutura, complexidade e harmonia”. E isso é um facto, embora o ano climático ora torna o vinho mais estruturado ou mais fresco, mais frutado ou mais floral, mais alcoólico ora mais elegante. Desejavelmente.
Por exemplo, até 2011, o Quinta da Leda foi produzido com três castas: Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz. Só a partir de 2012 é que entra no lote a Tinto Cão, que, quando colhida cedo, introduz um nível de acidez muito eficaz no vinho. Outra curiosidade: até 2010, a Touriga Nacional era a casta predominante (chegou a ser 60 por cento do lote), mas a partir de 2010 começa a dar espaço à Touriga Franca, sendo que a partir de 2011 o peso daquela que é conhecida no Douro como a espinha dorsal dos vinhos do Porto e Douro altera-se radicalmente.
Em 2013 e 2014, o papel da Touriga Franca no lote chega a ser de 70 e 60 por cento, respectivamente. Só este facto altera a estrutura aromática dos vinhos, porque uma coisa são as notas de bergamota e de violeta da Touriga Nacional e outra diferente é o perfil de frutos de baga ou esteva da Touriga Franca (além do que esta faz na estrutura de boca). Mais, até 2003, as barricas de estágio eram sempre novas; de 2004 em diante passou-se para 50 por cento de madeira nova e outro tanto de madeira usada.
É evidente que quanto maior é o conhecimento da quinta maior é a certeza das parcelas certas para a definição do perfil do Quinta da Leda. E é o que tem acontecido recentemente, com a equipa de enologia a decidir na vinha que uvas é que vão fermentar em conjunto, primeiro em lagar (rapidamente) e depois em cuba. O exercício da viticultura de precisão é uma grande ajuda nesta matéria, mas exige tempo e está sempre a ser modelado face às alterações climáticas.
Entre 20 vinhos, nenhum defraudou (um ou outro mais compotado, mas não passou disso). Há, todavia, preferências. E, para nós, merecem destaque as colheitas de 1999 (carácter cítrico e especiado), 2003 (muito sério e ao mesmo tempo elegante na prova de boca), 2008 (de novo as especiarias, mas com notas de esteva e caruma) 2013 (perfume de bergamota no nariz e guloso na boca) e 2018, pelo carácter invulgarmente vegetal e mineral, mas sempre com as especiarias da praxe. Donde, talvez se possa dizer que as notas de especiarias são uma imagem de marca do Quinta da Leda.
Para quem acompanha esta marca há muito tempo, a surpresa, como não poderia deixar de ser, veio dos vinhos mais recuados, pelo facto de ainda revelarem — com notas terciárias, é certo — alguma riqueza de fruta e, acima de tudo, frescura na prova de boca. O que nos leva a concluir, pela enésima vez (já estamos cansados de repetir isso, mas não há nada a fazer), que é um disparate beber estes vinhos quando são lançados. São bebíveis com três anos de vida, isso é certo, mas darão muito mais prazer com mais uns cinco ou sete anos em cima. E se tivermos a sorte possuir magnuns, então nem se fala.
O vinho que está neste momento do mercado é Quinta da Leda 2019, cuja crítica foi feita por Pedro Garcias em Outubro passado e pode ser consultada aqui no Terroir, mas se alguém encontrar colheitas anteriores à venda, já sabe o que fazer.
Nome Casa Ferreirinha Quinta da Leda 2019
Produtor Casa Ferreirinha, Sogrape
Castas Touriga Nacional
Região Douro
Grau alcoólico 13,5 por cento
Preço (euros) 45 (valor médio)
Pontuação 93
Autor Pedro Garcias
Notas de prova Um Douro mesmo Douro mas não, e ainda bem, excessivamente maduro. Tinto de aroma e sabor mediterrânicos, associa exaltantes notas frescas e apimentadas às sensações florais secas e à fruta bem madura típicas da região. Embora ainda muito novo, já causa bom impacto à mesa, sobretudo na companhia de pratos de carne. Um tinto que mostra o melhor do Douro Superior.