Os porcos felizes são a essência do fumeiro de Aldina Barroso
Em tempo de feiras do fumeiro de Trás-os-Montes, conhecemos uma das suas guardiãs: em Boticas, Aldina aprendeu com a sogra e só usa produtos da sua criação. “Vai-se vendo, fazendo e aprendendo”.
Aldina Barroso aprendeu com a sogra, fazia para a família, mas agora são à volta de seis mil alheiras em cada temporada. Juntando as chouriças e os salpicões, dá-se conta de que serão mais de nove mil peças. “E há ainda os presuntos, que não passam pelo fumeiro mas chegam a precisar de três anos para curar.”
A contabilidade é fácil, já que tudo é produto de casa: “Na matança são sempre à volta de 30 porcos e de cada um tiramos umas 200 alheiras, que é o que mais fazemos. Das chouriças, ou linguiças, como também lhe chamam, umas oitenta por cada porco, e os salpicões são poucos, 15 a 20 no máximo.”
Aldina fala sempre no plural, referindo-se à família, sobretudo ao marido, Abel, para quem remete as questões de pormenor. É ele que explica que os porcos só são abatidos quando pesam entre 280 e 300 quilos, e que além dos recos criam também cerca de duas centenas de galinhas e ainda patos e perus, na aldeia de Beça, concelho de Boticas.
“O Nuno, o meu genro, é que me ajuda, trata dos animais. As cortes estão sempre um luxo, muda-as duas vezes por semana, estão sempre limpas e enxutas, qualquer pessoa pode andar por lá que não se suja. É por isso que as alheiras são boas, são porcos felizes”, explica Aldina, que reforça a ideia para deixar claro que não se trata de uma figura de estilo, é isso que quer dizer: “São mesmo porcos felizes. Quando se muda a palha brincam com ela, apanham-na com a boca, envolvem-se nela e brincam uns com os outros.”
A qualidade das carnes do porco é, pois, fundamental para o sabor das alheiras. É sobretudo a parte entremeada da barriga. Todas são salgadas durante três a quatro dias, ao que se segue um dia de demolha para tirar o sal antes de serem cozinhadas num refogado com muita cebola, alho e salsa. As das aves, sobretudo dos galos caseiros, são cozidas em conjunto, ou com a água das carnes, e depois esfiadas à mão. “Hoje há máquinas para triturar as carnes, mas nós esfiamos, fazemos à mão para manter o fio, que foi como aprendi com a minha sogra”, justifica Aldina. Outro ensinamento foi sobre o pão, uma sêmea de trigo com pouco fermento que é específica para a confecção das alheiras.
Já para as chouriças e salpicões, as carnes - “das partes mais nobres do porco” - ficam uma semana a temperar em vinha de alhos. “Para não ficarem muito escuras, uso vinho tinto e branco, água, sal e um pouco de pimentão vermelho para dar um bocadinho de cor, tal como nas alheiras.” Outra especificidade é a lareira exclusivamente com lenha de carvalho para o fumeiro das alheiras, chouriças e salpicões. “Se estiver tempo seco, de geada, são oito a dez dias para as alheiras e as chouriças, o salpicão são sempre mais cinco dias”, explica.
Há ainda os presuntos, dois por cada porco, alguns com mais de 20 quilos, “que são os mais rijos, para curar precisam de três anos”. Neste caso dispensam o fumeiro, secam ao ar, num espaço com corrente de ar. “A seguir ao abate ficam dois dias na câmara de frio e só depois é que são salgados, um dia por cada quilo. Depois disso são lavados, com um jacto de água, como os carros, para tirar o sal, e voltam para a câmara de frio, pelo menos uns 30 dias, e só depois é que é o processo de secagem.”
O marido, Abel Barroso, explica que “de tempo em tempo têm que ser passados com azeite ou banha de porco” para formar uma capa que protege o interior e mantém as carnes macias enquanto drena a humidade. "Nós fazemos com azeite porque é mais fácil”, completa.
Para Aldina, a arte do fumeiro não implica quaisquer truques ou segredos. “É como cozinhar, vai-se vendo, fazendo e aprendendo. Depois é uma questão de jeito e gosto pessoal. Ia vendo como a minha sogra fazia, como usava as coisas e as voltas que dava. E depois fui fazendo, com o meu jeito e o meu gosto e, pelos vistos, as pessoas gostaram.”
De início só para consumo familiar, mas quando o casal montou um restaurante as coisas mudaram radicalmente. Primeiro, O Caçador, em 1994, a que se seguiu a Estalagem Rio Beça, junto a Boticas. “Foi o restaurante que puxou pela produção, os clientes gostavam e pediam cada vez mais”, relembra Aldina, dando conta de que agora toda a produção se destina ao serviço do restaurante.
Em tempos ainda levava à feira de Boticas, que este ano decorre de 12 a 15 de Janeiro, “mas para produzir com qualidade não dá para fazer mais e o restaurante consome tudo”. Associado ao Hotel Rio Beça – a lei impôs a mudança de designação da estalagem –, o cozido que é servido entre Novembro e Abril é o melhor cartaz para o seu fumeiro.
Há sempre ao fim-de-semana (por encomenda nos outros dias) e conta também com os pernis, queixadas, orelhas, costelas, presunto e as outras carnes dos porcos que abatem. “O único que compramos, a gente conhecida, é a chouriça de abóbora, que por tradição não fazemos. Das carnes de galo às couves, cenouras e batata kennebec, tudo é de produção própria”, assegura Abel, explicando que também no resto do ano mandam os produtos locais e genuínos.
É o caso da vitela barrosã - “certificada pela associação de produtores” grelhada na brasa ou assada no forno ou as trutas do rio Beça com molho de escabeche. Mas há sempre alheiras e chouriças, preservadas em vácuo, para que a todo o tempo se possa comprovar que as que têm origem em porcos felizes são de outra qualidade.
Texto alterado a 13 de Janeiro, para corrigir o nome da localidade