Um avô com duas caras

O meu avô, que a mim sempre me pareceu um velhote divertido e inofensivo, chegou a dormir com um facalhão debaixo da almofada, ameaçando a qualquer momento matar a minha avó.

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Bruno Martins/Unsplash

Quando conheci o meu avô, ele já era velho, como é suposto serem os avós, e faltavam-lhe vários dentes da frente. Os poucos cabelos brancos que lhe sobravam — uma franja escassa e rala, amarelada pela insistência das lavagens a sabão azul e branco — davam-lhe um ar patusco e inofensivo. O seu hálito cheirava sempre a tinto, fosse à hora do pequeno-almoço ou do jantar. Parecia que lavava os dentes com vinho.

O meu avô era comunista e dizia-o com orgulho a toda a gente, sobretudo quando estava bebido, que era quase todas as noites. No Verão, punha-se em tronco nu à varanda, mostrando a sua enorme barriga peluda à vizinhança, e punha a tocar no volume máximo do gira-discos o hino do Partido Comunista Português — "Avante, Camarada" —, que cantava a plenos pulmões até ser interrompido pela chegada da polícia, por denúncia de algum vizinho. É que mesmo que partilhassem da escolha partidária, entendia-se com naturalidade a queixa dos vizinhos, já que o meu avô deixava de ter consciência das horas quando afogado em vinho.

O hino era cantado amiúde às três da manhã; dizia ele que todas as horas eram boas para se partilhar o hino com os camaradas. Foi com o meu avô que aprendi a letra dessa e de muitas outras canções. Gostava de fazer rir os netos e de tentar que a minha avó lhe mostrasse um sorriso com dentes, coisa escusada (que eu não entendia à época) porque da minha avó só recebia dentes assanhados de ódio. Vim mais tarde a saber que quando era novo, e durante muitos anos, o meu avô tinha sido um homem mau. Batia na mulher e aterrorizava os filhos e as filhas. O meu avô, que a mim sempre me pareceu um velhote divertido e inofensivo, chegou a dormir com um facalhão debaixo da almofada, ameaçando a qualquer momento matar a minha avó. Quando estava sóbrio e depois de se desculpar em lágrimas, como fazia sempre, as vizinhas diziam à minha avó que a culpa era do álcool, que era o vinho que lhe fazia soltar os demónios e ser cruel com toda a gente.

A verdade é que nunca deixou de beber, mas a velhice matou-lhe o demónio e a crueldade. Mesmo embriagado como em novo, o que mais gostava era de comer e cantar, e de trazer do lixo coisas que considerava ainda boas, acumulando uma quantidade de tralha inútil em casa, o que desgastava ainda mais os nervos da minha avó — já de si esfrangalhados —, que tinha mais do que razões para odiá-lo.

O meu avô foi um marido horrível, fê-la passar pelas maiores violências e vergonhas. Mas eu era uma criança e não entendia que uma pessoa pode ser uma coisa para uns e outra para outros. Eu desconhecia que uma pessoa, ainda mais sendo da família, podia ter duas caras. Se ele tinha sido o terror da minha avó, para mim era um avô muito querido e bem-disposto. Hoje é-me difícil manter esta imagem intacta. Saber que batia na mulher e que aterrorizava os filhos não me permite gostar dele sem reservas nem mágoas. Morreu há muitos anos, mas sempre que oiço o hino do Partido Comunista ou vejo à venda o fruto rainha-cláudia (era assim que me chamava), lembro-me dele com uma ponta de inevitável saudade e carinho.

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