Um trabalhador-estudante nunca deixa de o ser

Que, um dia, todos consigamos aceder ao ensino superior sem que, para isso, precisemos de abdicar do lazer, das amizades e, consequentemente, da saúde mental.

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Estudante Unsplash

Acordo em sobressalto. Levanto ligeiramente a cabeça, que antes repousava tranquilamente sobre uma almofada tão confortável quanto desgastada, e berro: “Meu Deus, já são 11h; deveria ter começado a trabalhar na tese há duas horas!” Do nada, olho para o meu lado esquerdo e encontro a minha companheira com um semblante risonho. Inquiro-a: “Que é?” Ela responde: “Amor, hoje é domingo, o primeiro dia de 2023. Entregaste ontem, dia 31 de Dezembro de 2022, a tua dissertação de mestrado. Não há qualquer 'trabalho na tese’ por fazer. Descansa.” Perante tamanha revelação, concedo uma segunda oportunidade à almofada sem fronha, decidindo manter-me no meu leito. Enquanto tento perder-me novamente no sono, fito o tecto branco do quarto, ornamentado pelos raios de sol que logram atravessar as frestas da persiana entreaberta da janela que ladeia o flanco direito da cama, e penso: “Pois é, já acabou.”

No dia seguinte, o processo repete-se, porém, desta vez, sem intervenientes. Agora mimetizo sozinho, palavra por palavra, o diálogo supramencionado, chegando à mesma conclusão: “Pois é, já acabou.” Mas desengane-se o leitor se pensa que isto terminou aqui, pois, na manhã de terça-feira, sucedeu exactamente o que acontecera nas manhãs anteriores. O certo é que, apesar de todas as provas em contrário, não me convenço. Para mim, não acabou.

Durante os últimos 15 meses, conciliei as leituras, as pesquisas, as análises, as redacções e as correcções inerentes à elaboração de uma dissertação de mestrado com um emprego em regime integral num call center. Vi-me obrigado, em virtude das necessidades materiais, a conjugar a natural ansiedade decorrente da elaboração de um trabalho académico com a constante sensação de urgência causada pela tipologia dos serviços de apoio ao cliente, que são desenvolvidos para atender, com a máxima celeridade, pessoas cujas necessidades têm, imperativamente, de ser satisfeitas "para ontem".

Tal malabarismo de actividades e sensações teve, obviamente, os seus impactos. As 60/70 horas que dediquei semanalmente a ocupações produtivas, adiando continuamente momentos de ócio, não me permitiram escapar de 2022 incólume. Esta mente continua, dia após dia, a simular cenários de emergência, a encenar crises de pânico, a deixar-me ansioso sem qualquer razão que agora o justifique no plano dos factos. Mantém-se aqui, num qualquer ponto da nuca, um "mefistófelezinho" que insiste em proferir: “Tens de te mexer!” Mas, na verdade, não tenho. E vou ter de me habituar a não me mexer da mesma maneira que me mexi durante mais de um ano.

Presumo que a realidade que descrevi com alguma brevidade seja transversal à vasta maioria dos trabalhadores-estudantes. Enquanto se encontram nessa lastimosa condição, cobram mundos e fundos de si próprios, não conseguindo nunca parar para desanuviar e apreciar o bom e belo – porque o trabalho intelectual acompanha-os para todo o lado. Quando lhe põem termo, já não conhecem outro modus vivendi senão o de esperar constantemente que alguma agrura se imponha, operando involuntariamente um estado de alerta quer quando estão acordados, quer quando dormem (ou tentam dormir).

A todos os trabalhadores-estudantes: que possamos reaprender a viver. E que, um dia, todos consigamos aceder ao ensino superior sem que, para isso, precisemos de abdicar do lazer, das amizades e, consequentemente, da saúde mental. Sonho com uma época na qual os humanos não precisarão de se desumanizar para se educar.

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