Show must go on (o espectáculo tem de continuar), é comum ouvir-se e é assim com a moda desde sempre. Por isso, em 2022 não foi excepção. A inflação e a escassez de matérias-primas fizeram tremer o sector este ano, levando ao crescimento do mercado em segunda mão. Mas o glamour da arte de bem vestir fala mais alto e o luxo, ainda que envolto em constantes polémicas, continua a encantar consumidores e a fazer sonhar.
Um ano de partidas
O início do ano havia de ficar marcado pela morte do consagrado Thierry Mugler, o padrinho do power dressing, aos 73 anos. Mugler distinguiu-se pelos seus designs teatrais, com ombros largos e decotes vertiginosos, aliás, inspirados no seu passado de bailarino. Vestiu dezenas de artistas como David Bowie, Beyoncé, Lady Gaga e os Duran Duran. Estava afastado da sua marca desde 2002, apesar de lhe continuar a dar o nome. O projecto está hoje a cargo do director criativo Nicola Formichetti.
No mesmo mês, morria André Leon Talley, o primeiro jornalista afro-americano a ter algo dizer sobre a moda. Foi o primeiro director criativo negro da Vogue, entre 1988 e 1995, e voz activa sobre o racismo que envolve a indústria. Talvez por isso tenha sido escolhido pelo casal Obama como consultor de estilo.
Aqui mais perto, em Espanha, 2022 ficou marcado pela partida de Antonio Miró, uma das referências da moda daquele país, que levou a qualidade da criação catalã para as passerelles do mundo. Depois do auge nos anos 90, em que se notabilizou internacionalmente com uma parceria com a marca de alfaiataria italiana Ermenegildo Zegna, à semelhança de Mugler, também Miró se afastaria da marca própria. Em Maio de 2021, a empresa pedia a falência.
No Japão, a moda ficou mais pobre com a morte do revolucionário Issey Miyak, aos 84 anos. Pioneiro, mudou a relação entre costura e corpo, sem esquecer a tradição japonesa, que manteve graças à tecnologia. As pregas e plissados são marca da sua assinatura e um dos legados que deixa para a moda, em virtude da técnica de modelagem, que possibilitava que nunca amarrotassem.
No mesmo mês, em Agosto, morria também a primeira japonesa a entrar na alta-costura internacional, Hanae Mori, aos 96 anos. Ficou famosa pelos seus desenhos de borboletas que apresentou nas passerelles de Paris. Mori fica para a eternidade por ter também criado o vestido de noiva usado pela imperatriz Masako.
Em Portugal, mas com influências da moda japonesa, morreu Manuela Gonçalves, aos 77 anos. Foi uma das pioneiras da criação nacional do pós-25 de Abril, mas a postura discreta que manteve durante a vida fez que fosse desconhecida para a maioria dos portugueses. A propósito da sua morte, as historiadoras de moda, Anabela Becho e Bárbara Coutinho, lembravam a importância do seu trabalho conceptual como reflexo da “efervescência cultural” dos anos 80.
Pioneiro foi também Mário Matos Ribeiro, um dos fundadores da ModaLisboa, que morreu aos 64 anos. Era professor de Design de Moda na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa e foi um dos responsáveis pela concepção do projecto da semana da moda da capital, ao lado de Eduarda Abbondanza.
Um ano de mudanças
Este foi também um ano de partidas, mas noutro sentido, com 2022 a revelar-se particularmente surpreendente nas mudanças na liderança criativa das históricas casas de moda. Nos últimos meses de cada ano é comum testemunhar mudanças de estratégia, com as empresas à procura de um renovado interesse por parte dos consumidores, de forma a também fazerem frente a uma anunciada crise no mercado do luxo, lembravam os especialistas ao PÚBLICO.
Alessandro Michele deixou subitamente a Gucci depois de sete anos como um dos directores criativos mais mediáticos da indústria da moda. Já Daniel Lee abandonou a Bottega Veneta no auge do seu sucesso para, pouco depois, ser apontado para o lugar de Riccardo Tisci na Burberry. Tom Ford vai afastar-se da marca epónima em 2023, na sequência desta ter sido vendida à Estée Lauder. Por seu lado, Raf Simons encerrou o projecto em nome próprio. Diz-se que assumirá responsabilidades acrescidas na liderança criativa da Prada.
Há também novos nomes que vão ganhando mais peso na indústria, como o da britânica Grace Wales Bonner, que venceu o prémio do Concílio da Moda do Reino Unido pela marca independente de moda masculina. Seis meses depois da morte do aclamado Virgil Abloh, Ib Kamara foi anunciado como o novo director de arte e imagem da Off White, a marca de streetwear de luxo, parte do conglomerado LVMH.
Entre os jovens directores criativos, aos 27 anos, Maximilian Davis está a revolucionar a florentina Salvatore Ferragamo, um abalo há muito necessário na marca histórica, que se encontrava estagnada. E na Nina Ricci, desde Setembro, Harris Reed está a levar o romantismo a outro nível com a sua abordagem sem género. A primeira celebridade que vestiu? A cantora britânica Adele.
O ano do metaverso e dos arquivos
Pode parecer paradoxal que, em 2022, o ano tenha sido marcado simultaneamente pelo crescimento do metaverso e pelo regresso aos arquivos das casas de moda. Segundo dados de um relatório da consultora Mckinsey, o mundo virtual deve crescer em 4,77 biliões de euros até 2030. Apesar da curiosidade das marcas neste universo ter aumentado este ano, ainda se presencia uma fase inicial deste investimento.
A Gucci, a Balmain ou a Prada foram algumas das marcas que lançaram produtos exclusivamente digitais, com colecções de NFT’s, os tokens não- fungíveis que abalaram o mundo das artes, incluindo, claro, a moda. Ainda que possa parecer estranho comprar uma peça de roupa exclusivamente digital, a ideia é aliar o universo físico e digital, com lançamentos simultâneos nos dois meios, como fez a Gucci na colecção Supergucci. A marca italiana foi também pioneira em possibilitar a compra de artigos com criptomoedas em algumas lojas dos EUA.
Há outras marcas como a Paco Rabanne que combinam a experiência do metaverso com o regresso aos arquivos, ao vender modelos antigos da marca no digital. Nas passerelles, voltar a colecções de outrora foi mesmo uma das tendências mais marcantes do ano, evocando também a sustentabilidade.
De lembrar, a colecção de Kim Kardashian com a Dolce & Gabbana, que foi vasculhar as criações da dupla entre 1987 e 2007. A socialite norte-americana protagonizou também um dos momentos mais marcantes do ano ao usar um vestido de Marilyn Monroe para o Met Gala.
Nas passerelles ficará para a memória o regresso de Linda Evangelista, num desfile da Fendi que celebrava os 25 anos da mala Baguette. Aos 57 anos, a supermodelo ficou “brutalmente desfigurada” depois de um tratamento cosmético, que a afastou das lentes das câmaras.
O ano da sustentabilidade e da segunda mão
A sustentabilidade está, actualmente, inerente ao discurso da moda, mas assume um papel cada vez mais preponderante sobretudo no mercado em segunda mão, que se espera crescer mais de 85% entre 2022 e 2026, diz a Global Data. Mais do que uma preocupação com o ambiente (o primeiro motivo para uma moda mais sustentável), é a crise económica alavancada pela guerra na Ucrânia que faz espoletar a moda em segunda mão.
Este ano, a moda de luxo abrandou do pico de crescimento sentido na sequência da pandemia, também por culpa do aumento do custo de vida. Um dos principais motivos de preocupação para as casas de moda foi igualmente o mercado chinês, afectado durante grande parte do ano pelas rigorosas medidas de contenção da covid do governo chinês.
E se a segunda mão se vai normalizando cada vez mais ─ até a princesa de Gales, Kate Middleton, usou um vestido alugado ─ , há outras respostas ao aumento de preços menos felizes, como é o caso da Shein. A marca chinesa foi a mais pesquisada no Google em 113 países, apesar de estar envolta em polémicas relacionadas com os direitos humanos e a quantidade astronómica de peças que produz por dia.
Um teste, levado a cabo pela Greenpeace, a 47 peças com etiquetas Shein apurou que sete destes produtos continham substâncias perigosas que violam as regras da União Europeia. Noutros 15 encontraram-se níveis preocupantes de químicos.
Além da preocupação ambiental e para a saúde, a marca é conhecida por copiar os designs, não só de pequenos criadores que não têm meios para a enfrentar em tribunal, mas também de gigantes como a Zara. Ainda este ano, o grupo espanhol Inditex passou a ser liderado pela herdeira de Amancio Ortega, a filha Marta.
O ano das polémicas
Numa tentativa de renovar o interesse na moda de luxo, respondendo à pressão financeira dos conglomerados, as marcas digladiam-se nas campanhas publicitárias ─ ganha o mais extravagante. Nessa busca por ganhar o coração (e a preferência de compra) do consumidor com uma atenção crescentemente rarefeita, há atropelos e escolhas menos éticas, que podem custar bem caro.
A Balenciaga viu a sua reputação ser abalada este ano por diversas polémicas, sobretudo depois de ter lançado uma campanha onde mostrava crianças e peluches vestidos com acessórios que evocam práticas de cariz sexual associadas a bondage. O escândalo terá levado celebridades como Kim Kardashian a desmarcarem-se da sua relação com a marca.
Pouco depois, a casa sediada em Paris lançou uma segunda campanha que contou com nomes como Nicole Kidman, Isabelle Huppert e Bella Hadid. Entre as imagens da sessão realizada num cenário de escritório, uma incluía a presença de papéis referentes às leis de pornografia infantil.
El director artístico de Balenciaga entona también el «mea culpa» por la «inapropiada» campaña BDSM de la firma https://t.co/yNAoRgnULe pic.twitter.com/XOnSd1YyWT
— Creatib Disseny (@CreatibDisseny) December 25, 2022
A marca demorou a reagir e a pedir desculpas. Quando o fez lançou farpas às agências de publicidade responsáveis pelas campanhas e prometeu proceder “a investigações a nível interno e externo”, além de estabelecer contacto com “organizações especializadas em protecção infantil e que visam acabar com o abuso e exploração infantil”.
Os especialistas em moda criticam que as polémicas ligadas à marca são apenas mais um dos sintomas a demonstrar com a Balenciaga de hoje pouco tem a ver com a que o espanhol Cristóbal Balenciaga criou em 1937 com uma forte aposta num corte inovador feminino. “Onde é que a casa ainda existe e onde é que se transformou numa mera jogada de marketing?”, questionava o historiador Paulo Morais-Alexandre.
E por falar na Balenciaga, 2022 marcou também a queda de Kanye West. Tudo começou em Setembro quando o rapper apareceu no desfile de uma colecção assinada por si com uma camisola em cujas costas se podia ler White Lives Matter (WLM), o slogan nascido em 2015, adoptado por grupos supremacistas brancos.
Depois disso, caíram as parceiras com a Gap, a Adidas e a Balenciaga. O rapper não cessou de incitar ao ódio e à violência, chegando extremo ao lançar ideias anti-semitas e ser bloqueado no Twitter. Foi a crónica anunciada do fim da sua carreira.
E por cá como foi?
Em Portugal, tendemos a continuar a ser país de pouca cultura de moda, apesar da gigantesca indústria têxtil e de calçado, como lamentava o designer Diogo Miranda, em entrevista ao PÚBLICO: “Temos uma indústria gigante, podíamos ser um país como França ou Itália. E não somos porquê? Porque Portugal só liga ao futebol. Nós fazemos um desfile e as pessoas só querem ir pelo momento social e não para comprar.”
Contudo, os criadores nacionais não estão alienados das tendências de mercado (a sustentabilidade, voltar aos arquivos e utilizar tecidos antigos, entre outras) e têm também uma palavra a dizer criativamente, com destaque para os novos talentos como Béhen, Constança Entrudo, Gonçalo Peixoto, João Magalhães, Nopin, Huarte ou Maria Carlos Baptista.
Este foi o ano em que no discurso dos designers portugueses que apresentam na ModaLisboa e no Portugal Fashion (PF) mais se reflectiu a ideia de que a moda mais do que ser conceptual, tem de ser comercial (uma questão que Ana Salazar já se debatia há 50 anos). De outra forma, corremos o risco de continuar dependentes de fundos comunitários para suportar esta expressão criativa.
Voltou-se a falar dessa dependência durante este ano, quando a semana de moda da Invicta anunciou que corria o risco de terminar por falta de financiamento. Os designers uniram-se para lembrar que a moda é cultura e precisa de ser protegida, mas a notícia foi também mote para recordar que é importante encontrar forma do sector se auto-sustentar em Portugal. A directora do PF, Mónica Neto, argumentava, todavia, que já só metade do evento é suportado por dinheiro europeu, o resto provém de parceiros institucionais e patrocínios. O apoio europeu para as próximas estações acabaria por ser assegurado.
Sem o apoio da ModaLisboa (co-organizado pela Câmara Municipal de Lisboa) e do PF, os criadores nacionais não têm meios para apresentar de forma independente (excepto raras excepções como Tony Miranda). Fazer um desfile envolve não só o investimento na colecção, como o arrendamento de um espaço, contratar modelos, maquilhadores, cabeleireiros, equipas de montagem, etc.. Todos estes custos ficam a cargo das organizações de moda.
Há vários anos que se tenta uma maior cooperação entre Porto e Lisboa no que toca à moda de autor e, apesar de ter sido assinado um acordo em 2018, as organizações apenas se mostraram unidas na promoção nacional além-fronteiras. Por cá, pouco ou nada mudou e continuam a apresentar-se colecções em Março e Outubro em duas semanas consecutivas.