Porque gostamos dos objectos de que gostamos? A neurociência explica

Percepcionamos e avaliamos através de uma lente individual; a lente das nossas experiências, conhecimento, interesses, necessidade, objectivos e expectativas.

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Kelly Sikkema/Unsplash

Nós, humanos, somos sensíveis ao que nos rodeia. Usamos informação sensorial para guiar o nosso comportamento. Para estarmos no mundo.

Decidimos como agir com base no valor hedónico que atribuímos a objectos, pessoas, situações ou acontecimentos. Procuramos e temos comportamentos que nos conduzem a consequências positivas e gratificantes e evitamos os que nos levam a consequências negativas ou punitivas. Construímos o nosso conhecimento do mundo de acordo com o quanto gostamos de certos elementos do nosso ambiente, e fazemo-lo através de aprendizagens e ao gerar expectativas sobre eles.

A estimativa hedónica é, em suma, um mecanismo biológico fundamental. Mais, é crucial para a sobrevivência.

Tradição normativa

Ao longo de milénios, filósofos e cientistas procuraram um objectivo comum: identificar normas que ligassem as propriedades dos objectos ao prazer que deles percepcionamos.

A ideia de que o prazer emana de objectos recua até ao pensamento filosófico clássico. A escola de Pitágoras defendia que o valor hedónico de um objecto residia na harmonia e proporção das suas partes. Propriedades como a simetria, equilíbrio e proporção áurea foram postuladas como determinantes para os nossos gostos.

Esta filosofia assume que o valor hedónico está inerente ao objecto. É, por isso, expectável que desencadeie respostas predeterminadas em termos de beleza, gosto ou prazer.

O epítome moderno desta tradição é um estudo recente da Nature Human Behaviour. Os autores dizem que as preferências podem ser previstas a partir de características por estímulos.

Mas então porque temos gostos tão diferentes e em constante mudança? Porque amamos o que outros detestam, e vice-versa? Como é possível deixar de gostar de alguém que amávamos, ou vice-versa? As propriedades dos estímulos não são suficientes para explicarem porque gostamos do que gostamos?

Sensibilidade hedónica

Estas teorias e a suposição em que se sustentam não têm escrutínio empírico. A simetria não apela a todos; depende da experiência e personalidade. A preferência pela proporção áurea atrai o gosto comum, mas nem sempre o individual.

É um erro assumir que as modas implicam uniformidade ou criam leis universais. Na realidade, elas mascaram variabilidades significativas na sensibilidade hedónica. Isto é, o papel que as propriedades dos objectos têm no quanto gostamos deles.

Cada pessoa traz um conjunto de experiências e conhecimento para a avaliação. A avaliação também está relacionada com a situação em que acontece. Daí a expressão “gostos não se discutem”.

Diferenças individuais

Certamente, gostamos de coisas diferentes de formas diferentes. Um motivo para isso é o facto de os nossos cérebros serem diferentes devido à genética e a razões de desenvolvimento ou relacionadas com experiências. Isto significa que os processos por detrás da avaliação também variam.

Examinar estes processos individuais é a chave para entender os mecanismos gerais. A neurociência contribuiu substancialmente para isso.

A conexão entre as áreas sensoriais e os sistemas de recompensa cerebral é essencial para a avaliação hedónica. Explica a grande variabilidade no prazer que retiramos de estímulos como a música. Isto significa que o prazer de ouvir música depende de como estas áreas do cérebro comunicam. Tanto que a informação sensorial que não é transmitida para o sistema de recompensa cerebral não tem valor hedónico. Este é o caso da anedonia musical [condição que impede que as pessoas sintam prazer ao ouvir música], onde esta comunicação é reduzida. Como resultado, as pessoas com esta condição não conseguem sentir prazer ao ouvir música.

Outros factores importantes são as experiências anteriores, responsáveis pelas diferenças de gostos entre as pessoas e em diferentes momentos da vida.

A familiaridade é essencial para definir preferências. De facto, o prazer sentido com a música conhecida e desconhecida envolve actividade cerebral diferente. Ainda que a repetição nos possa deixar enfadados, gostamos do que conhecemos.

Gostar de objectos que pertencem a diferentes categorias é influenciado pelas nossas preferências. Por isso, a categoria preferida determina o critério a partir do qual avaliamos ambos os objectos. Isto é, escolhemos por comparação entre a resposta predefinida e a sua alternativa.

Factores contextuais

As diferenças individuais explicam a diversidade de gostos entre pessoas. E como a avaliação é estruturada influencia o gosto de acordo com as circunstâncias. Gostamos de coisas diferentes em momentos diferentes.

Então, como desenvolvemos as preferências? As entidades físicas relevantes à sobrevivência estão associadas a propriedades sensoriais específicas. Isto permite-nos aprender a detectar perigos e benefícios — o princípio básico através do qual geramos preferências. No entanto, isso não explica porque os nossos gostos variam. Uma razão é que as nossas avaliações são sensíveis ao contexto.

Muitos sistemas cognitivos desenvolvem mecanismos que lhes permitem considerar informação relevante, tendo em conta o estado de espírito, as necessidades, os objectivos e expectativas do sistema e as condições de avaliação. Por exemplo, as escolhas das fêmeas relativas ao parceiro são afectadas pela preferência de outras fêmeas: a fêmea do peixe guppy prefere um macho rejeitado, se mais tarde o vir a ser perseguido por outras fêmeas.

As expectativas, a fisiologia e o ambiente têm uma importância significativa na avaliação. Afectam a forma como os sistemas perceptores, cognitivos e emocionais agem.

Por exemplo, quando estamos com fome, comer algo doce é algo que dá muito prazer. À medida que vamos ficando cheios, o prazer de comer vai diminuindo, até ao ponto em que deixamos de gostar das nossas comidas favoritas.

Sistemas de avaliação

Em suma, o valor hedónico não é inerente ao objecto. Não pode ser previsto só com base nas suas características. Depende da neurobiologia de um indivíduo e das fontes computacionais envolvidas.

Isto não implica que as avaliações sejam arbitrárias. Se fossem, teriam pouca utilidade biológica. Pelo contrário, os mecanismos do cérebro evoluíram de forma a dar respostas flexíveis num ambiente em mudança.

Os mesmos estímulos poder ter valores radicalmente diferentes dependendo da situação. Podem ser benéficos para um indivíduo e prejudiciais para outro; benéficos numa determinada circunstância e prejudicial noutra.

Ainda assim, os sistemas de avaliação são adaptáveis e não vinculativos. São úteis à sobrevivência ao preverem a avaliação dos objectos em situações específicas.

A percepção não é uma gravação passiva das propriedades dos objectos. É a forma através da qual um sistema cognitivo activo tenta dar sentido ao mundo. E fá-lo através de uma avaliação contínua das experiências, objectivos e expectativas.

A nossa visão do mundo nunca é inocente. Percepcionamos e avaliamos através de uma lente individual; a lente das nossas experiências, conhecimento, interesses, necessidade, objectivos e expectativas.

Gostamos do que gostamos por causa de quem somos, aqui e agora.


Exclusivo P3/The Conversation

Ana Clemente é investigadora de pós-doutoramento em neurociências cognitivas na Universidade de Barcelona

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