Há cerca de uma semana, o hospital CUF Descobertas, em Lisboa, recebeu um pedido pouco comum. Mas a acompanhante e responsável pela escritora Nélida Piñon, internada ali desde o primeiro dia de Dezembro, Karla Vasconcelos, tanto insistiu que conseguiu: a clínica abriu uma excepção e autorizou as cadelinhas Suzy e Pilara a visitá-la no seu quarto.
O reencontro aconteceu no último sábado, dia 17, de manhã. Nélida Piñon, 85 anos, morreu horas depois, no final da tarde. “Foi uma despedida linda”, conta Karla, 63 anos. “Tinha que ver a cara dela quando viu as meninas em cima da cama, pondo a patinha em cima do lençol, fazendo festinha”, descreve, um pouco emocionada, a acompanhante, que continua em Lisboa, onde está a tratar da trasladação do corpo da ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL). “Uma burocracia danada”, confessa.
As “meninas” são a pinscher Suzy, de 13 anos, e à chihuahua Pilara, de 3. A dupla que foi se despedir da escritora no seu leito de morte é tratada como gente pela família Piñon — e não é uma força de expressão, longe disso.
Antes de morrer, vítima de complicações de uma cirurgia à vesícula, a escritora fez constar no seu testamento que os dois animais são donos dos quatro apartamentos que mantém no mesmo prédio, um edifício de luxo à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul do Rio de Janeiro.
“Eu é que administro tudo, mas elas é que são as herdeiras de facto”, afirma Karla. “Tanto é que lá está escrito que os apartamentos não podem ser vendidos enquanto as meninas estiverem vivas. É a casa delas, propriedade delas.”
Filha única, sem filhos e sem parentes próximos — excepto alguns primos na Bahia e outros no Rio —, Nélida preocupou-se em garantir que o padrão de vida das suas cadelinhas não cairá após a sua morte. As duas foram registadas com o sobrenome da família — Suzy Piñon e Pilara Piñon, esta última baptizada em homenagem à bisavó da escritora —, e têm passaporte europeu.
Fazem check-up completo a cada seis meses e têm uma certa sofisticação gastronómica. “Elas adoram queijo manchego [espanhol], anchovas e foie gras”, enumera Karla. “Tudo delas é do bom e do melhor, e vai continuar sendo”, garante a assessora da escritora, que é a tutora oficial dos animais, e herdeira (entre os seres humanos) do património e da obra de Nélida, de quem foi amiga e assessora pessoal durante 25 anos.
Precavida, a escritora, traduzida em mais de 30 idiomas e com dois prémios Jabuti, Vergílio Ferreira e um Príncipe de Astúrias na estante, actualizou seu testamento em 2018. Ainda em sofrimento com a morte de Gravetinho, um pinscher de 11 anos que sucumbiu à pneumonia e a deixou à beira de uma depressão, Nélida Piñon fazia uma viagem de carro com Karla quando percebeu que Suzy, a viúva do finado Gravetinho, ficaria órfã se as duas morressem juntas num acidente. Pilara ainda não existia.
“Então, ela chamou o advogado e incluiu no testamento uma terceira pessoa, desde então nomeada para ser a mãe das meninas quando nós duas morrermos”, conta Karla. Quem é essa pessoa? A assessora não diz. “Mas é alguém que sabe o que a Suzy e a Pilara representavam para Nélida.”
Curiosidade: As cinzas de Gravetinho, guardadas até hoje no escritório da ex-presidente da ABL, no Rio de Janeiro, serão enterradas ao seu lado, no mausoléu da Academia, em data ainda a anunciar. Será o primeiro cão a ter tamanha honra.