Devíamos dar uma oportunidade aos vinhos de Trás-os-Montes, mas também aos vinhos da Beira Interior, de Távora Varosa, do Algarve e de outras pequenas sub-regiões. E porquê? Porque são diferentes, porque há pequenos e médios produtores que fazem trabalho de mérito a partir de castas ditas minoritárias ou de vinhas velhas pouco produtivas e porque – mais importante – os vinhos invulgares são importantes para a nossa educação. Fará sentido seguirmos pela vida fora a beber vinhos de duas ou três regiões quando temos em Portugal 14 regiões vitivinícolas? Faz sentido orgulharmo-nos do nosso património genético e depois ‘bebermos’ sempre as mesmas castas? É óbvio que não faz sentido.
Noutros tempos, quando os responsáveis da restauração de Lisboa viam um cliente indeciso tinham uma pergunta sempre engatilhada. “Prefere Borba ou Reguengos?” Hoje, esse disparate foi substituído por outro: “Diga-me lá, gosta mais de Douro ou de Alentejo?” E só se o cliente mostrar cara feia é que o empregado atirará com: “Atenção, temos outros vinhos, 'tá aqui a cartinha para escolher, pode ver à vontade que já cá venho”.
É claro que as coisas mudam. Já se vê a oferta de um Fernão Pires do Tejo aqui, ou um Castelão das areias da Península de Setúbal acolá, mas mudam à velocidade de um caracol. Num país que consome civilizadamente vinho quase todos os dias, se cada um de nós escolhesse uma região diferente por dia isso seria bom para o treino do nosso gosto e muito bom para as finanças dos produtores de regiões mais pequenas. E como comemos com a família e com os amigos à mesa, estaríamos a fazer serviço público.
Ora, uma das formas de dar a volta ao problema da falta de notoriedade das regiões pequenas é clássica e consiste em levar comitivas de produtores às grandes cidades. No mundo ideal, deveriam ser os consumidores a procurar os vinhos nas terras onde são feitos e prová-los com as gentes e a gastronomia local, mas, enquanto isso não acontece com as pequenas regiões, há que continuar com a velha receita. E foi o que aconteceu recentemente para os vinhos de Trás-os-Montes, com a Comissão Vitivinícola Regional a levar ao Porto 22 produtores (só não foram mais porque não quiseram). Foi, de resto, a primeira vez que tal aconteceu com os vinhos da região transmontana.
Em termos de vinho certificado, Trás-os-Montes é uma região pequena, mas, no que diz respeito à dispersão geográfica e à diferenciação dos terroirs, as coisas são diferentes. Um vinho dos solos graníticos da sub-região de Chaves nada tem a ver com outro dos solos xistosos da sub-região do Planalto Mirandês. Uma vinha velha em Miranda do Douro terá castas bastante diferentes daquelas que estão plantadas numa vinha em Santa Valha (Valpaços) ou nas imediações de Vidago. Aliás, só o facto de Trás-os-Montes ser a região do país onde existem mais vinhas velhas é um trunfo que joga a seu favor. Claro que, como sabemos, muitos produtores de Trás-os-Montes plantaram as famosas tourigas – e não só – para apanharem a boleia dos vinhos do Douro, mas parece haver consciência de que a região deverá usar como bastião castas como o Bastardo, a complicada Tinta Amarela/ Trincadeira, o Marufo e até a pouco amada Tinta Gorda. Entre outras.
A casta Tinta Gorda é, de resto, interessante para mostrarmos como vai a região em matéria de modas. José Preto, presente no Crowne Plaza Hotel, dizia-nos com orgulho que foi o primeiro produtor a certificar vinho em Trás-os-Montes. E muitos transmontanos têm, de facto, apreço pelos vinhos com marca homónima. Outro engarrafador bem mais jovem é António Costa Boal, que, pelos vistos, não viu interesse em participar na mostra de vinhos no Porto. Ora, estes dois produtores têm vinhas com a casta Tinta Gorda. Acontece que enquanto José Preto não vê grande utilidade na casta (tem memória dos tempos em que a casta “mijona” dava vinhos muito abertos de cor e com pouca longevidade), Costa Boal, ao fim de dois anos de testes pelas mãos do enólogo Paulo Nunes, não só lançou este ano um excelente varietal de Tinta Gorda como está a plantar mais área de vinha com esta casta.
Este caso mostra bem duas realidades geracionais distintas em Trás-os-Montes. Temos, por um lado, um produtor que não concebe a ideia de lançar um vinho aberto de cor, com pouca estrutura e acidez (José Preto) e outro (Costa Boal) que percebeu que a casta Tinta Gorda, além de rara, cai muito bem num nicho de consumidores que pretende tintos mais frescos e elegantes. José Preto vende os seus vinhos entre os 11 e os 28 euros e Costa Boal vende o seu Palácio dos Távoras Tinta Gorda 2021 a 38 euros.
Num registo muito peculiar temos Amílcar Salgado com a marca Quinta de Arcossó, cujos vinhos são regularmente premiados. Este produtor tem um portfólio que é uma espécie de dois em um. Plantou num solar granítico da sub-região de Chaves as grandes castas nacionais, mas não abandonou as castas regionais. É por isso que, com a marca Quinta de Arcossó, tanto podemos encontrar um varietal de Bastardo como um espumante feito com Pinot Noir ou um Riesling doce e que boa companhia fará, por exemplo, a um pão-de-ló daqueles bem secos do Minho e que nos tiram do sério. Só pelo facto de ser um produtor irrequieto, experimentalista e que arrisca em vinhos com tempo de estágio adega – o que já não é pouco – devemos comprar os vinhos sonhados por Amílcar Salgado.
E por falar em estágio prolongado, passemos aos vinhos Montalegre, de Francisco Gonçalves, conhecido por ter plantado aquela que era à época a vinha nova em maior altitude em Portugal (1070 metros). "Era", porque entretanto, a Quinta de Soalheiro plantou uma vinha a 1100 metros de altitude no Minho, às portas do Parque Nacional da Peneda-Gerês (apesar de já não ter a mais alta, Francisco Gonçalves pode usar epíteto, porque o registou). Enquanto aguardamos o lançamento de um kit que trará vinhos de Montalegre estagiados a mil metros de altitude e outros da mesma colheita estagiados no mar, em Sines (será curioso ver as diferenças), chamamos a atenção dos leitores para um inusitado e desafiante Clarete Montalegre (na realidade é mais um palhete porque tem uvas brancas) e para um branco de 2016 (o Montalegre Grande Reserva 2016), que esteve dois anos em cascos, passou depois um ano em inox e, de seguida, foi engarrafado para permanecer mais uns anos em estágio antes de ser lançado. Um branco sério e bem fora da caixa.
Ainda assim, se é para falar de coisas fora da caixa, nada como provar os vinhos Casa do Joa. Atenção que não estamos a falar do Feito de Joa, que esse, com a ausência de sulfitos e a adição de flor de castanheiro para fazer as vezes daquele, é um orange wine tão radical, mas tão radical que merecerá uma crítica mais detalhada num desses dias. Estamos a falar dos rosés e dos tintos Alto Joa, que juntam inúmeras de castas e que merecem ser apreciados pela vontade do produtor em fazer as coisas de forma muito primária. Nem toda a gente gostará destes vinhos, mas é essa a piada.
Agora, se algum leitor quiser provar vinhos de um produtor que faz das castas regionais o seu ponto de honra e ainda por cima em modo de produção biológico, experimente o Encosta de Vassal Tinta Amarela e, acima de tudo, o Encosta de Vassal Bastardo. Vinhos muito puros na transmissão do perfil das castas. Desenjoam-nos das castas badaladas.
Para acabar com as surpresas, destaque-se a marca Vidago Villa, em particular o Grande Reserva branco, feito em exclusivo com a galega Godello (Gouveio por cá). Não foi apenas o vinho que se revelou fantástico (intrigante, até), mas o facto de o produtor Paulo Martins ter permitido, num evento público, a prova de quatro colheitas do mesmo vinho (de 2018 a 2021) a todos aqueles que quiseram perceber como está a evoluir o branco. Só por isso merece aplausos.
Trás-os-Montes é isto: uma região riquíssima e diversa em matéria alimentar. E os teimosos dos transmontanos – perdão, orgulhosos – conhecem a missa de cor e sabem que não têm necessidade de imitar ninguém. Vamos esperar que, em matéria de vinhos, haja maior interesse na exploração das castas regionais. Uma Touriga Nacional de Trás-os-Montes é apenas mais uma Touriga Nacional (e nem vale a pena falar de Syrah, Cabernet & Co). Se os produtores do Nordeste do país querem que os consumidores comprem vinhos da sua região, vão ter de engarrafar coisas únicas. É assim que o mercado funciona. Que consumidor esclarecido quer comprar um vinho de Trás-os-Montes que cheira a vinho do Douro?
Notícia actualizada a 21/12/2022, corrigido o parágrafo em que falávamos da vinha mais alta de Portugal