De parvoíce em parvoíce, pelo caos de Doha
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Hoje, foi dia de final de Mundial, em Lusail, a partir das 18h locais. A organização logística para adeptos e jornalistas tinha sido irrepreensível desde o início do torneio, ainda que já tivesse percebido que cada funcionário sabe apenas do seu pequeno sítio. Tudo o que se passar 20 metros ao lado da sua área de jurisdição ele já não domina – nem tenta dominar. E por que motivo haveria de o fazer? Eles são tantos. Hoje, senti isso na pele mais do que nunca.
Segue o relato de uma sucessão de parvoíces e más opções minhas, com o rigor possível nas horas e sempre no fuso horário do Qatar.
15h30: De credencial ao pescoço, saí de casa, bem a tempo de chegar tranquilamente ao estádio.
15h43: Chego à estação de metro de Al Mansoura.
15h43: Vejo filas inacreditáveis à entrada.
15h45: Vou ter com um segurança e pergunto o que se passa.
15h45: “Tivemos de fechar a estação, porque estava com demasiadas pessoas. Não sei a que horas vai abrir. Para já não podemos deixar entrar e em Msheireb [uma das estações principais] é igual”.
15h55: Entro num Uber, apesar de já temer um trânsito diabólico.
15h58: Motorista pede para ir apanhar o irmão, que é segurança na porta 4 do estádio e também tinha de ir para lá.
16h10: Com dois “clientes” apressados, o motorista conduz como o piloto qatari Nasser Al-Attiyah, no meio do intenso trânsito. Quando não pode andar, descarrega a frustração na buzina – ele e os outros todos. Caos.
16h20: Passamos pela estação de Al Bidda, que estava com poucas pessoas, e saio do Uber, porque seria mais rápido se fosse de metro.
16h21: “Esta entrada está fechada, tem de dar a volta”.
16h28: “A estação está encerrada, não há metro”, alertam, depois de eu percorrer cerca de um quilómetro em corrida – diz o Google Maps.
16h28: “Vá para aquela fila, que é para um autocarro para Souq Waqif e depois terá lá outro para Lusail”.
16h30: Peço ajuda com os horários a uma pessoa responsável por dar informações desse tipo. Rude e com um sorriso condescendente diz-me: “Acha que eu sei? É esperar, como os outros”. Já com os bons modos esgotados, mas sem faltas de respeito, pergunto-lhe se o trabalho dele não é dar informações e sou ameaçado de que chama a polícia se continuo com aquele tom. Teria sido giro prolongar aquilo, até porque não foi inédito, mas não havia tempo para diversão.
16h35: Desisto do autocarro. Nunca vou chegar a horas. Decido percorrer novamente um quilómetro até à estrada, para apanhar um Uber.
16h38: Tenho uma quebra de tensão, que o almoço ainda não tinha acontecido. Governo-me com bolachas.
16h41: Retomo a corrida.
16h45: Apanho um táxi não oficial e negociamos um preço até Lusail.
16h46: Percebo que não sou bom negociador.
16h49: Dou conta de que numa das correrias a chave de casa me saltou do bolso. Problema para mais tarde.
17h06: Faço a pergunta mais idiota que fiz em 32 dias de Qatar: “Tem MB Way?”. Ele não sabia do que eu estava a falar. Quem diria...
17h10: Vamos a um ATM. Corro até ele. Sem dinheiro.
17h20: Levanto dinheiro noutro ATM, que obrigou a desvio da rota e perda de mais tempo.
17h25: Motorista diz que vai acelerar e que sabe um caminho sem trânsito. Não foi por ter visto o dinheiro, ele é que é um amor de pessoa.
17h35: De repente, tenho o estádio em vista e peço para sair, que o trânsito era caótico. E vou a correr.
17h40: Passo um conjunto de barreiras a toda a velocidade. A multidão não podia passar, mas eu, com credencial de jornalista, podia. Sorrio.
17h48: Chego à tribuna de imprensa e ainda assisto à cerimónia dos hinos. Não sei bem como.
À hora a que escrevo esta crónica ainda não sei como entrarei em casa. Eles devem ter outra chave. Espero eu.